quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Enfermidade




Do leito da profundidade mais abissal até a última película da exosfera, não há um ser capaz de decifrar o mistério das sandices desenfreadas que cometemos contra nossa própria saúde física, quando o amor não nos deixa outra alternativa senão vivê-lo. É que a mente muito preocupada em encontrar soluções cabíveis se esquece de gozar e acaba dando-se por satisfeita com a perfeição dos paradigmas das palavras. Mas não estaria eu  tropeçando em  minha própria arapuca, numa tentativa racional de enquadramento, uma vez que ao invés de explicar, deveria mesmo estar usufruindo de minha doença ou sabotagem da saúde, se assim o preferir?

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Fortuna original







Nasceu miserável e nem por isso era infeliz. Seus esforços por riquezas materiais não vingaram, mas desejou uma fortuna que para muitos pareceria tola. Queria colecionar cumprimentos. Sim, a cada bom dia ou tarde e até noite anotava em seu bloco improvisado de rascunhos alheios, singularmente grampeados. Nada passava-lhe em branco e com doze anos  já se considerava homem de considerável status cumprimental. Porém, percebeu que os cumprimentos se repetiam  a ponto de tornar-lhe a tarefa entediante, mas não se daria por vencido com uma aparente dificuldade linguística de seus fornecedores. A demanda por novos cumprimentos acarretou no divórcio entre o espírito desapegado de vaidades fúteis e o próprio ego colecionador. Dedicava-se em tempo integral ao mundo, à vida, aos seres e não seres. Viveu de universo até que seu corpo imergisse no imensurável, tornando sua presença digna de memória da mais simples bactéria, que por sua vez retribuia sua gratidão em forma de cumprimentos. Calculadoras, computadores, bancos e até as mentes mais brilhantes sucumbiram em sua ingrata tarefa de contabilizar sua eternamente crescente fortuna. Tornou-se o maior de todos os milhonários.    

domingo, 12 de dezembro de 2010

Idas sem vindas

Não há o ir embora. Tal expressão é um equívoco. O que há é apenas o ir a algum lugar por certo tempo, ou até mesmo a imprevisão da volta, pois nem mesmo a volta existe. Ela é uma nova ida. As direções não importam, muito embora para quem fica sempre será muito longe. E embora sejamos bípedes, inalcançáveis seríamos se fôssemos quadrúpedes.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Leia com moderação




Há de se compreender que se pensavas que seria tudo uma maravilha, que haveria tranqüilidade, te enganastes. Nada é tranqüilo, não pode ser. Serenidade é ópio, ópio é transe e transe burrice. O espinho da rosa é a lembrança de que o belo é a distração que nosso egocentrismo forja para nos calar a razão.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Irremediável






Cada dia menos tempo, a hora se aproxima e o corpo não resiste, sabendo que há distâncias que se encurtam e momentos que não se deixam aprisionar, pois são feitos de grãos de areia, leves, que se juntam, formando uma tempestade que ganha forma, cegando os que insistem em permanecer de olhos abertos, porém há aqueles que se misturam ao fenômeno como se fossem dotados do dom do mimetismo e não se sabe exatamente em que estado ou forma se encontram, ora areia, ora humano, mantendo um certo meio-compromisso corporal que ao cessar das fortes rajadas dos ventos, cala os uivos, se torna brisa suave e simplesmente...

...dissipa.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

iwho



ipod

iphone

ipad

itouch

iwant

ineed

ibuy

ican

ibelong

iam

ithink...so

domingo, 7 de novembro de 2010

Reino menor



Há pássaros, pedras, chuvas e fogo

O tempo, a saúde, a fome e o demagogo

A luz, a sanha, a lança e o adeus

O som, o barro, o astronauta e deus.

Mas a verdade de tão rara não se lavra

Jaz perene, absoluta e universal

Muito além do reino da palavra.

Tão escravo quanto rei

Faz do silêncio tua lei.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O fim de Plutão



A terra é aproximadamente dez vezes maior do que o ex-planeta Plutão.

Urano é aproximadamente dez vezes maior que a Terra.

Saturno é aproximadamente três vezes maior que Urano.

Júpiter é aproximadamente o dobro de Saturno.

O Sol é aproximadamente cem vezes maior que Júpiter.

Sírius é aproximadamente cinco vezes maior que o Sol.

Pólux tem aproximadamente dez vezes o tamanho de Sírius.

Arcturus é aproximadamente quatro vezes maior que Pólux.

Aldebaran é aproximadamente dez vezes maior que Arcturus.

Betelgeuse é aproximadamente vinte vezes maior que Aldebaran.

E Antares tem apenas o dobro de Betelgeuse.

E se achas no direito de desqualificar Plutão.

Quem tu pensas que és, aproximadamente?

sábado, 23 de outubro de 2010

Dois minutos de saudade



Viste a minha alma

Viste a minha essência

Viste comigo o sol nascer sem maldade

Como é que não acreditas pois

em dois minutos de saudade?

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Alegoria do Apê


Imagine uma família vivendo em uma moradia em forma de apartamento com apenas uma porta e várias janelas cobertas por uma película bloqueadora de claridade que conserva o outro lado em estado noturno constante.

Rompendo com a penumbra interna, uma luz azulada mantém os residentes do cubículo de olhos moribundos com suas pálpebras rendidas e respiração espaçada. São seres com estômagos proeminentes, dieta baseada na combinação de carboidrato com derivado lácteo sobreposto e derretido, salpicado com ervas aromáticas. A luz emana de uma janela eletrônica amparada por uma estrutura feita com madeira de procedência desconhecida.

Olham fixamente à janela eletrônica que filtra o exterior da unidade habitacional. Tomam por realidade não somente o turbilhão de imagens que adormecem suas mentes, mas também as macaquices realizadas no ínterim de trinta segundos, os “boa-noite” mecânicos, o brado de cineastas falidos e intrigas fictícias veladas. Riem de piadas ridas. Semanalmente desliza por debaixo da porta um calhamaço de nome imperativo, que determina como se deve raciocinar, ou deixar de fazê-lo. Também há entregas diárias de aparadores de fezes animais, que são lidos antes de cumprir com sua função.

Agora pense que um dos residentes é arrancado da letargia e arremessado ao mundo externo. Ao se deparar com tanta luminosidade sofrerá, pois seus olhos e ouvidos habituados ao filtro ofuscar-se-ão com tanta realidade. Resistirá até que o óbvio ululante esbofeteie-lhe a face.

Voltará ao quadrado escuro e tentará se passar pelo portador da revelação. Mas logo retomará seu lugar demarcado pelo peso de suas fartas nádegas, pois a trama clichê já vai começar.

Os dois estalos do planeta Vênus em sua forma prateada retomam a hipnose.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Vulgo


Governava o Rei dos Mares, com a força das ondas e o temor das tempestades.
Mas não reinava sozinho, pois havia os nobres da corte de abrangência global. O Conde dos Gelos, que equilibrava a efervescência dos vulcões submarinhos com suas águas frias oriundas dos pólos.

O Duque, ora veja, era senhor das cidades e cidadãos, enaltecidos pelo adjetivo maiúsculo, que também contemplaria os vassalos da Religião, sob o comando do Visconde dos Templos, eterno colhedor de tributos impagáveis.

Assim se dava o status quo.

Mas havia uma inquietude no fundo do mar. O Rei dos Mares não percebia a gravidade. Pensou que se tratava apenas do deslocamento de placas tectônicas e conseqüentes tsunamis. Mas a agitação tinha origens mais profundas.

Rei que se preza pressente o perigo. Ordenou que seus tubarões de caça revirassem o fundo do mar a procura dos indícios que levassem ao causador da revolta dos mares. Abaixo da superfície são todos iguais. São todos e nenhum.

Mas a origem é uma só, só os nobres não vêem. O Conde dos Gelos, em seu afã juvenil, ordenou que os pólos ficassem mais frios, a ponto de congelar todo o oceano. O Rei dos Mares o advertiu:

- Vá com calma meu rapaz, eu ainda sou o maior.

O Duque, senhor dos cidadãos e braço direito do Rei, cegou-se de tanta raiva e abriu fogo contra qualquer alvo possível:

- Veja meu senhor, a culpa é das baleias encalhadas! Veja vossa alteza, só pode ser culpa dos cavalos marinhos! Veja meu supremo, são as sereias, com certeza são elas, acredito.

O Rei a cada denúncia mandava caçar quem quer que fosse citado como culpado pelo rebuliço.

Mas ninguém mais poderia deter a força de Calamar. Por que Calamar era querido por todos os seres viventes. Por que Calamar estava nas profundezas do reino maior.

Coube ao Visconde dos templos difamá-lo com aumentativos.

Calamar perdera um membro em guerra – Aleijadão! Calamar é invertebrado – Molengão! Calamar é cefalópode – Cabeção! Calamar é vulgar – Povão! Calamar quando provocado, emite jatos de tintas letais aos condes, viscondes, duques e veja você, até reis.

Nosso Novo Rei não venceu pela força, venceu pela palavra. E sua palavra cala qualquer um. E de uma vez, cala templo, gelo, cidade. O Rei cala mar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

2031



Era início de dezembro e nos corredores da escola não mais ecoavam as saudações matutinas dos alunos. Tampouco soava a campainha de trezentos decibéis, há muitos anos aposentada, mas em seu lugar preservada por puro capricho.


Apenas o retumbar de dois saltos italianos de madeira intercalados com o som abafado da solas esmagando pequenas partículas de poeira podiam ser ouvidos.

À medida que se aproximava da sala do diretor ganhava pressa e firmeza. Uma breve parada diante da porta para ajeitar o cabelo tendo como reflexo a placa que identificava o ocupante principal do recinto.

Entrou sem bater.

Mas não seria tão simples assim. Entre o Diretor da escola e o senhor Rodolfo havia uma ante-sala e dentro dela uma secretária. Após uma sucinta, porém adequada apresentação, a entrada foi autorizada.

Um aperto de mãos frio como a escolha das armas para um duelo deu o tom da visita.

- O senhor já deve saber o motivo de minha vinda até aqui.

- Presumo que sim, mas em quê posso ajudá-lo?

Parecia cínico, mas o diretor jamais brincou em serviço.

- Gostaria que o caso da reprovação do meu filho fosse revisto e reconsiderado.

- Uma coisa de cada vez, por favor. O que exatamente o senhor gostaria que revíssemos?

- Meu filho nunca tirou nenhuma nota abaixo de nove em matemática.

- Seu filho jamais cooperou com o trabalho da empresa júnior que produzia cadernos feitos com papel reciclado que eram vendidos na loja da escola.

- Meu filho não é peão de chão de fábrica e muito menos comerciante de bazar.

- O senhor tem toda a razão. Por isso o desempenho dele nas avaliações de trabalho em equipe, gestão de qualidade e gestão financeira ficou muito abaixo da média.

- Mas isto é um absurdo! Ele sempre foi responsável com as tarefas, respeitando os prazos e critérios exigidos pelos professores. O projeto dele foi o vencedor da feira de ciências desse ano.

- E depois ele deu aquela infeliz declaração ao blog dos alunos dizendo que o mérito da vitória era exclusivamente dele.

- Não há dúvida alguma sobre isso.

- Levando-se em consideração que o projeto era sobre estética corporal e ele era o manequim vivo, o senhor até tem alguma razão em acreditar nisso.

- Já entendi. Já entendi. Há um preço, não há?

- Há.

- De quanto estamos falando?

- De algo em torno de um ano para que ele possa demonstrar que está eticamente preparado para viver em sociedade e ser capaz de servir de exemplo para todos aqueles que o cercam. A propósito, ele também demonstrou total indiferença às causas humanitárias sendo reprovado em PIS.

- Que diabo é isso?

- Projetos de inclusão social.

- Dez em história.

- Dois em Cidadania e direitos humanos.

- Dez em Geografia.

- Um e meio em Cultura Brasileira.

- Dez em inglês.

- Melhor não falarmos da produção de textos.

- Vocês não são uma escola? O que são vocês?

- Nós somos o Centro de Desenvolvimento Humano.

- E o vestibular? Como é que fica?

- Falamos sobre isso nas aulas de História da Segregação Social. Aliás, ele também não obteve rendimento satisfatório.

- Você não reconsiderará o resultado do Mateo?

Cinco segundos intermináveis de hiato finalmente quebrados pela resposta cortante.

- Absolutamente.

- Pois aqui meu filho não fica mais.

- Sugiro que procure uma escola particular. Passar bem.

domingo, 12 de setembro de 2010

Último Palanque


O cortejo deixa a capela rumo ao cemitério municipal que fica do outro lado da cidade de São José da Bela Vista. De todos os eventos que já ocorreram nesta cidade, nenhum mobilizou tanto os seus oito mil habitantes, que sempre prestam suas condolências, mesmo que não vá ali um parente próximo, que convenhamos, deve ser fato raro dado tal contingente populacional. À frente de todos vem o padre e sua bíblia. O irmão mais novo e o filho caçula seguram as alças da frente do caixão. Nas alças traseiras, vem o filho mais velho e irmão mais velho.

Internada no pequeno hospital de São José está Dona Etelvira, totalmente alheia aos acontecimentos.

Familiares distantes também vieram prestar a merecida última homenagem. Esperam pacientemente sua vez para auxiliarem na árdua tarefa de carregar o jazigo. Poderia ser tudo mais simples, pois a funerária Morte Feliz, a única da cidade, dispõe do serviço, mas a abundância de braços amigos dá à procissão um ar ainda mais tradicional.

Enquanto isso no seu leito de hospital, Dona Etelvira ainda não sabe de nada e seria prudente que não soubesse.

A cerimônia avança com a sombra das nuvens sobre as ruas da cidade. O branco da abóboda da imponente igreja matriz é realçado pelos raios de sol que rompem o céu esverdeado de uma tempestade que se anuncia, tornando a atmosfera ainda mais lúgubre. Os alto falantes da igreja anunciam que mais uma alma local fora chamada para junto do seu criador. Na calçada, o bêbado descambaleia e traz o chapéu amarrotado para junto do peito; os cães, que não se atrevem a latir, deitam e demonstram no semblante a piedade e parecem inclusive rezar com as patas dianteiras sobrepostas sob a mandíbula, as orelhas abaixadas e os rabos recolhidos; todo o comércio arria as portas; até os pássaros pousam e escondem a cabeça sob uma das asas. Os únicos sons que se ouvem são dos saltos dos sapatos que trepidam sobre o calçamento de paralelepípedo e o dobrar intermitente dos sinos. Não há um cidadão sequer que não esteja comprometido com o ritual.

A exceção é Dona Etelvira, sozinha lá no hospital, poupada da dura verdade, sem desconfiar de nada.

Ao se aproximarem do portão do cemitério, o canto lamentoso das carpideiras já pode ser ouvido e arranca lágrimas até dos funcionários da funerária, habituados ao ofício. O afilhado assume o lugar do filho mais novo e o cunhado o do filho mais velho. O Prefeito e primo José Lizzo, rende o afilhado e a outra alça é tomada pelo vizinho, marido da companheira de carteado. A troca é mais solene e precisa do que a da guarda da rainha da Inglaterra. Adentram o cemitério pela avenida principal, dobrando logo à esquerda na terceira quadra, onde se encontra o túmulo da família Lizzo. O caixão é aberto uma última vez e o padre conclama um último pai nosso, seguido de uma salva de palmas e cumprimentos congratulantes. Logo em seguida, as pessoas vão deixando o cemitério enxugando as lágrimas, prontas para retomar suas atividades. Os últimos remanescentes são os comovidos funcionários da funerária, que fecham o caixão vazio e o levam de volta à agência.

Um pouco mais tarde no hospital, diante do marido vereador e candidato à sucessão, filhos e alguns dos parentes que vieram para se despedir, Dona Etelvira mostrou por que de boba não tinha nada:

– Meus queridos, estou certa que de hoje eu não passo. Profetizou a enferma terminal. E de fato, não passou.

O que ela não sabia era que no dia seguinte o negócio seria para valer.


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Faroleiro




De olhos abertos seguem seus caminhos, pelo passeio à esquerda de quem vai e à direita de quem vem na rua de mão única.


De olhos fechados abre-se uma clareira na floresta e os seres encantados se aproximam para a festa.

De olhos abertos dou um passo de cada vez, firme como deve ser a certeza de onde se quer chegar.

De olhos fechados a valsa suave de acordes simples e inocentes toca os corações dos puros, que se põem a bailar. Dançam em pares, suas roupas são leves e estão descalços. Não há espinhos na relva.

De olhos abertos o sol está quente, mas o coração bate na temperatura certa. Vê a janela da moça formosa? É pra ti que se abre. Mas não demora muito e a mãe perversa a fecha sem pudor. Cuidado com o buraco.

De olhos fechados há regozijo. Há banquete de frutas e vinho. Há bonança aos que querem o bem e somente o bem. Por isso dançam. Por isso bebem. Por isso comem.

De olhos abertos o sinal está vermelho. Pode atravessar. Atravesse na faixa e não pise na linha. Siga à esquerda.

De olhos fechados a lua ilumina a festa na companhia de muitas, quase todas as estrelas. Os seres têm olhos atrofiados, nariz e boca grandes. Não há escuridão que os detenha. Não há luz que os cegue.

De olhos abertos ninguém se olha, ninguém se vê. A lei é do medo. Se há sol há medo. Maldito seja quem ordenou que se fizesse a luz.

De olhos fechados a música parou. A floresta pegou fogo e os seres encantados tornaram-se o banquete.

De olhos abertos fica cada vez mais quente e oxalá! esquente mais.

Da rua à floresta leva-se algo em torno de cento e cinqüenta milésimos de segundos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cosmopolita


Não é da verdade que devo falar, é do fingimento.

Tirando o que se pensa ser real, o resto é falso.

Finja que respeita os seus pais e irmãos.

Dê-lhes carinho de mentira para obter carinho em troca.

Finja ter laços familiares com pessoas que você, supostamente, é incumbido de amar.

Guarde dinheiro. Sonhe com a Disneylandia. Ao encontrar aquele rato de mentira, em frente ao castelo de ilusão, próximo aos estúdios dos sonhos finja-se caucasiano e abastado. Não seja latino, seja incompreensível. Compre o chapéu de orelhas e finja-se de rato. Mostre aos amigos que você pode ser rato e eles não. Financie o sonho das crianças. Estadunidenses. Democráticos como rambos, soldados universais, provedores da paz e da liberdade.

Finja que és capaz de aprender, na escola, na rua, com os mais velhos. Finja que não copias.

Disfarce a ignorância fingindo saber o que ninguém sabe. Finja que todos são tolos. Assista ao jornal nacional, às novelas e finja que não é com você. É só provocação.

Faça de conta que gosta de pegar metrô lotado e que vive experiências sociológicas edificantes. Faça-se plural. Vista calça xadrez, tênis descolado, camiseta surrada e jaqueta de brechó. Finja que não liga, por que é assim e pronto e que se dane quem não gostou.

Finja que o sucesso é uma questão de tempo. Que trabalha. Finja ter escrúpulos, honra e dignidade.

Finja viver em outra sociedade. Enólogo, chef, bom pai e marido. Finja que joga tênis.

Troque o seu passaporte. Renegue seu nariz chapado, lábios carnudos, bunda arrebitada. Disfarce o samba.

De quatro em quatro anos, sem a menor intimidade e vergonha pendure a bandeira daquele país conveniente na janela do seu quatro por quatro assassino da camada de ozônio e finja que chora de emoção na hora do gol.

Finja que amadureceu e com isso ganharás status de sábio e diploma de inútil. Angarie compaixão com frases espirituosas, sem o menor pudor, que ainda assim serás perdoado.

No momento de abdicar da companhia dos entes queridos dissimulados, finja não ter medo.

De nada vai adiantar fingir que vives.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O canto do Galo

Cinco horas da manhã e nem bem havia cerrado as pálpebras e lá se vai Pedro para longe do colchão duro, mas quente.


Ainda sente o perfume distante de uma cachaça amarga, tomada ao som de conversas atravessadas, em meio a rodadas de palitos na noite anterior, na birosca do Simão.

- Diabo de galo miserável.

A leiteira só esquenta água. Do lado de lá tem chá, presunto e muito queijo com pão quentinho, do lado de cá, o pão ainda dorme, há pouco pó para coar e o que sobra é fé.

Veste um pouco de calça e enfia as butina. O candidato do boné já retornou ao anonimato. O da camisa promete.

Não reclama da vida, nem da mulher, muito menos dos filhos. Não têm culpa de nada. Dormem os inocentes. Um beijo na mulher, que deixou a marmita no forno, com a sobra da janta que sobrara do almoço. Ela nunca saberá de Leonor. Beija os filhos, cada qual à sua maneira, mas com afeto indistinto. Não esquece um só dia.

- Se eu pego esse galo desgraçado, acabo com ele.

Cinco e meia, tá na hora de tomar rumo.

Desce a rua, atravessa a passarela, dobra a esquina, pula o bêbado, leva a marmita morna, espera o sinal fechar, desvia do carro, aperta o passo, não vai perder a hora.

Tira do bolso duas notas e uma prata, espera na fila, troca por bilhete, passa a catraca, espera na fila, desce a escada rolante, vira à direita, entra na fila, espera na fila, empurra a fila, a fila o empurra, perde a condução. Espera de novo, lá vem a condução, entra na marra, se segura como pode, se espreme, se enrosca, se entorta, segura a marmita, olha a curva! Olha o freio! Mais vinte paradas e será nossa vez! Olha o breque! Lá se vai a marmita ao chão. Ficam o arroz o feijão e o ovo estrelado, mas rolam as lingüiças, que não vão muito longe. São pinçadas de volta, assopradas e bem guardadas. Não vai deixar cair de novo.

Chega ao destino. É empurrado para fora do vagão, entra na fila, sobe a escada rolante, dobra à esquerda, passa na catraca, ganha a rua, de frente à igreja, com o polegar direito, parte a cara em quatro, o peito em quatro, segue adiante, chega ao canteiro. Não esquece o ponto.

Qual é o andar de Pedro? Apressado, mete a mão na massa. Qual é o andar de Pedro? Põe o capacete e sobe a escada devagar. Passa o segundo, o terceiro. O quarto tem três quartos, o menor maior que seu barraco, o maior é o sonho de toda uma vida. Continua a subir. Qual era mesmo o andar de Pedro? Pára no sexto. Não há mais andar.

A visibilidade é boa, a poluição ainda não é sufocante, as buzinas dos automóveis vão aos poucos substituindo as piadas de passarinhos. Não tem graça nenhuma, é piada cada vez mais rara. Não vai rir de nada.

- Ainda mato aquele galo filho da puta.

É bom de colher, sapeca a massa, pega a lajota, uma a uma, vai sumindo a paisagem. Aparece a cachaça não se sabe de onde. É hora do almoço. Toma um trago, faz cara feia. Pega a marmita e se vira para o canto. É bom de colher. Não quer companhia.

De volta à labuta, ainda zonzo da pestana breve. Cambaleia por entre as lajotas e meias paredes. Fabrica um quadrado vazio. Aos poucos vai se erguendo o labirinto e o homem lá, se encarcerando. Cadê as piadas? Cadê a luz? Não ouve as buzinas.

O galo canta fora de hora em cima do telhado. O sol fica vermelho.

No canteiro é hora de trocar de andar. Não quer falar. Vai até o fim da laje. Olha para baixo e vê os transeuntes a esquivarem-se uns dos outros, escolhe o momento de calmaria. Não hesita.

Qual é o andar de Pedro? Pedro não tem andar. É pássaro, mas não voa. Não é rei, mas sente-se príncipe. De pernas para o ar, não quer voltar.

Pressente o momento em que todos o cercarão estupefatos. Indignar-se-ão por ele interromper seus dias com sua vida banal. Não tem esse direito.

Lembra-se do galo, da mulher, das crianças, de Leonor. Esfrega os olhos. As lágrimas molham o cimento. O cimento arranha seus olhos. Seus olhos vêem o sol vermelho. Não os fechará.

Ônibus, carros, motos, pedestres. Todos param. O mundo finalmente parou para ver Pedro. A cidade não é toda de pedra.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Fernheca

Fernheca era um personagem muito popular no pequeno vilarejo de Xenhenhem da mata. Apesar de seu nome soar estranho até para os habitantes locais, já havia sido incorporado ao vocabulário cotidiano. Vindo de lugar nenhum e filho de pai e mãe desconhecidos, foi adotado pelas famílias da localidade que o proviam com água, comida e abrigo. Era tão querido que se fosse candidato, venceria facilmente as eleições para a prefeitura do município se não fosse sua condição natural de bode. O motivo para tamanho prestígio do caprino é a chuva. A escassez das águas no sertão tem várias explicações científicas irrefutáveis que condenam a região à uma desertificação irreversível, mas a ciência jamais ousou explicar a influência do cocô de bode nos processos meteorológicos daquela cidadezinha em particular. Acreditavam que Fernheca produzia esterco mágico que ao se misturar com a terra produzia gases que subiam aos céus e formavam nuvens que por sua vez precipitavam, irrigando as hortas nos quintais das casinhas multicoloridas. Hortaliças verdes e grandes era um milagre naquela sequidão. Legumes como cenouras, beterrabas e pepinos coloriam as mesas modestas, mas fartas daquelas famílias. O sucesso do bode era tão grande que prefeitos de outras cidades pediam o bode emprestado para trazer-lhes um pouco de água para aplacar a sede de seus eleitores. De forma que o prefeito de Xenhenhem da Mata resolveu lucrar com o bode. Avisou que o bode estava à venda. Mandou as professoras ensinarem nas escolas que mesmo o bode pertencendo a um só dono, seus milagres continuariam a acontecer para o bem de todos. A população desconfiada discutia nas biroscas, esquinas e até nas cadeias. Um movimento contrário à venda do bode, liderado por Jeremias, o vingador do sertão, temido por suas aventuras no cangaço, em defesa dos famintos e sedentos e contra a tirania dos coronéis, começou a tomar forma e foi contagiando o povo até então pacato. Entretanto, a insurgência não foi suficiente para evitar que Fernheca fosse a leilão realizado na calada da noite na fazendo do Coronel Aristides, sendo arrematado pelo próprio. O preço irrisório revoltou a todos, mas o pior ainda estava por vir. Não somente a população havia sido privada da gloriosa companhia do bode, mas como também seu esterco passou a ser vendido pelo coronel a preço de ouro, em saquinhos de meio quilo, lucrando com o produto mágico por seis meses. Acontece que para o azar do coronel e principalmente do bode (já explico mais adiante), a chuva insistia em não dar o ar da graça, apesar do município registrar plantação recorde de semente de cocô de bode. Chegaram à óbvia constatação que se o bode não fosse alimentado pelo povo, seu bagaço não surtiria o mesmo efeito. O produto encalhou e os estoques de cocô de bode chegaram a níveis alarmantes, levando o ganancioso e empreendedor coronel a encerrar as atividades do bode (agora sim, o destino do bode). O bode foi servido em grande banquete. Teve buchada, fizeram das tripas lingüiça, até os olhos serviram aos convidados. O povo liderado por Jeremias ficou na espreita do lado de fora da fazenda e quando todos se deliciavam com as iguarias caprinas, as dependências da fazenda foram tomadas de assalto e a cabeça de Fernheca recuperada. Ainda havia a esperança de que a chuva voltasse a cair se a cabeça do bode fosse pendurada em praça pública, mas a homenagem não surtiu o efeito esperado. Jeremias, empolgado com o grande crescimento de sua popularidade, decidiu concorrer à prefeitura e ganhou facilmente as eleições contra Severino Pé de Serra, o candidato do coronelismo e forrozeiro de profissão. Jeremias trouxe o progresso e a prosperidade para Xenhenhem da mata. Até a chuva tinha o prazer de visitar a cidade. Vinha tanto que até fez morada, a ponto de precisarem construir uma ponte. As hortas cresceram mais verdes do que nunca e ninguém nem mais se lembra de Fernheca, o bode enganador.
Acima Fernheca em seus tempos de glória e abaixo o que sobrou

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Chateens

Gata100gato entra na sala


Lugatinha fala para Bi@: eu sei...dexa pra La

Bi@ pergunta para Lugatinha: vc nem vai pedir pra entregar o trabalho semana q vem??

Lugatinha responde para Bi@: nem...

Don Juan entra na sala

Don Juan fala para gata100gato: olá, como estás?

Gata100gato responde para Don Juan: xow, e vc?

Lugatinha pergunta para Bi@: sua mãe te dexô ih no churras???

Bi@ responde para Lugatinha: nem, saco viu...

Don Juan pergunta para gata100gato: podes falar agora?

Gata100gato responde para Don Juan: falar posso, mas é melhor tc. Hihihi

Don Juan responde para gata100gato: você e suas galhofas

Bi@ reclama com Lugatinha: só falta proibir a net tb.

Lugatinha pergunta para Bi@: pq q ela tah pegando no teu pé?

Bi@responde para lugatinha: sei lah! Acho que é por causa do Fred. Ela axa ele muuito velho pra mim. Aqueles papos de namoro na net e tem aquele seu lance com o bruno tb.
Gata100gato cutuca Don Juan: vc e esses palavrões

Don Juan responde para gata100gato: Não se trata de palavrão. Galhofa é uma palavra que significa pilherias ou piadas como normalmente usamos hoje em dia. Desculpe-me se não me fiz compreender.

Bi@ pergunta para lugatinha: to com xaudadex do fredinho... meu veinho.

Gata100gato responde para Don Juan: huaauahuauahuahuahua

Lugatinha fala para Bi@: ele nem é velho, vc q eh muito nova pra ele. Sabia q ele pode até ser preso????

Gata100gato comenta com Don Juan: foi mal, mas num tem como naum axar engraçado.

Bi@ responde para lugatinha: nem, isso eh nóia! Se eu quero e minha mãe libera num tem nada a ver. O problema eh ela liberar neh? Se meu pai fica sabendo ele me mata.

Don Juan fala para gata100gato: Não se incomode. Já estou acostumado com este tipo de reação. Gostaria de ver uma foto sua.

Gata100gato pergunta para Don Juan: pra q???? eu sou feia, se te mandar uma foto vc naum vai mais querer tc comigo

Lugatinha diz para Bi@: naum eh isso. Vc nem conhece ele direito. Nem sabe se a foto q ele mandou eh dele mesmo. Se eu fosse a sua mãe ficaria noiada tb.

Don Juan fala para gata100gato: Bobagem, tenho certeza que vou gostar. Não precisa ter medo. Apenas acho um pouco estranho as pessoas conversarem sem que possam se ver.

Gata100gato diz para Don Juan: o mistério é legal, use a imaginação

Bi@ zanga com lugatinha: qualé lu? Tah parecendo minha mãe. Vc começou a namorar o Bruno como? Naum deu certo?

Don Juan responde para gata100gato: tenho usado a minha imaginação desde o primeiro dia em que começamos a conversar. Acho que já posso ver a “gata ainda sem gato” você não acha?

Lugatinha responde para Bi@: nada a ver bia! O bruno nem eh velho, ele soh tem 22. O Fred tem mais de trinta. Podia até ser seu pai...

Bi@ zanga com lugatinha: cara, impressionante!!!!! A minha mãe falo a mesma coisa. Vc eh ou naum eh minha amiga? E daí q ele tem mais de trinta? Pelo menos ele naum eh muleke sustentado pelo papaizinho. Vc sabe muito bem q eu naum gosto de muleke.

Don Juan pergunta para gata100gato: Então? Manda a foto vai?

Lugatinha zanga com Bi@: cara, vc tah viajando bia. O bruno trabalha tah? E nem é muleke naum. A minha mãe adora ele e vive convidando ele pra vir aqui em casa.

Bi@ diz para lugatinha: huumpf

Don Juan cutuca gata100gato: Você ainda está aí?

Lugatinha diz para Bi@: me desculpa a sinceridade, mas eh o q eu penso. Axo q isso q eh ser amiga. E só pq as coisas naum estão dando certo pra vc naum precisa ficar gorando a felicidade dos outros.

Gata100gato responde para Don Juan: to sim. Vou fazer o seguinte. Vou te mandar uma foto da família e vc me axa, ok?

Lugatinha pergunta para Bi@: preciso do seu trabalho para ver como eh. Vc pode me mandar?

Gata100gato enviou um arquivo para Don Juan: file_fotodapatota.jpg

Lugatinha cutuca Bi@: ???

Don Juan aceitou o arquivo de gata100gato

Bi@ enviou um arquivo para lugatinha: file_trabalhogeo.docx

Gata100gato pergunta para Don Juan: me axo ae?

Lugatinha pergunta para Bi@: Q sacoooooo! Vc vai ficar assim sem falar comigo? Eu sou sua amiga e preciso te falar o q penso.

Bi@ responde para lugatinha: perae, jah volto...

Gata100gato cutuca Don Juan:????

Bi@ responde para lugatinha: eu sei q vc eh minha amiga e quer o melhor pra mim, mas eu axo q nesse caso vc poderia me dar uma força, só isso. Eu te ajudei com o Bruno, vcs ficaram aqui em casa a primeira vez. E eu naum disse q o Bruno era muleke, soh falei q eu naum gosto de muleke!!!!

Lugatinha responde para Bi@: eu sei amiga, tudo q vc tah falando eh verdade. Soh faltava essa agora, a gente brigar por causa de namorado, neh? Xe xabe ki ti amuuuuuuuuuu!!!

Bi@ responde para lugatinha: ohhhhh ki lindia!!! Tb ti amuuuuu amiiiiiigaaaa!!!

Don Juan paquera gata100gato: abraçada com uma senhora que suponho ser sua avó, não poderia estar mais linda.

Gata100gato paquera Don Juan: axim eu fico xem gaxa...

Don Juan paquera gata100gato: então nós vamos nos ver pessoalmente ou não?

Bi@ pergunta para lugatinha: entaum? Vc me ajuda com o meu fredinho?

Lugatinha responde para Bi@: tah bom, mas soh uma vez hein

Don Juan sai da sala

Bi@ pergunta para lugatinha: axo q quarta vai dah. Eu mato o inglês.

Lugatinha responde para Bi@: quarta naum rola. Minha mãe tah em casa. Vai ter q ser na sexta, ela vai trabalhar o dia inteiro quarta .

Bi@ pergunta para lugatinha: mas sexta eu naum tenho nada, nem tem como dah desculpa

Gata100gato cutuca Don Juan: snif! Snif! Cadê vc??

Fredim entra na sala

Fredim fala privado com Bi@

Lugatinha fala para Bi@: ele entro!!! C viu?

Bi@ responde para lugatinha: to tc privado com ele aki. Ele me perguntou se rola essa semana?

Lugatinha pergunta para Bi@: e se vc falar q vai fazer trabalho na minha casa?

Bi@ responde para lugatinha: Uhuuuuuu! Demorô!!!! Posso marcar com ele entaum?

Lugatinha responde para Bi@: pode!

Gata100gato zanga com Bi@: a sua mãe vai ficah sabendo dessa safadeza. Saia já desse computador e a partir de hoje nada de bate papo na net. A senhorita estah de castigo. Eh de casa pra escola e da escola pra casa.

Bi@ pergunta para gata100gato: Vó?!?!?!

Fredim sai da sala

Lugatinha sai da sala

Don Juan entra na sala

Don Juan pergunta para gata100gato: Vó?!?

Gata100gato zanga com Don Juan: se ferrou, pedófilo!!!

Bi@ chama Don Juan: Fredim, eh vc?

Don Juan sai da sala

Polícia entra na sala

Polícia fala com gata100gato: Excelente trabalho Sra. Gertrudes. Nós o pegamos.

Bi@ sai da sala

Gata100gato responde para policia: positivo e operante. Bom trabalho rapazes!

Gata100gato sai da sala

Policia sai da sala

Don Juan sai de cena

sábado, 17 de julho de 2010

O mago sem diário

No rosto de Guilherme havia uma luminosidade que piscava incessantemente em multicores. O quarto estava escuro, mas o menino jamais conseguiria acender as luzes voluntariamente, pois estava em transe. Fora hipnotizado por um mago que paradoxalmente era conduzido pelo próprio garoto, por entre câmaras e florestas, desafiando os mais abomináveis seres, presentes apenas no imaginário distante dos mais vividos, mas tão reais para aquelas jovens retinas. Guilherme e o mago nada temiam, pois possuiam um bastão, que ao ser apontado na direção de seus inimigos, liberava uma carga energética de cor azulada e brilhante, de mais de duzentos mil volts. Ao invés do inimigo, lia-se mais vinte, mais cinquenta e dependendo da quantidade de energia despreendida do bastão, até mais cem. Depois de duras batalhas, o cansaço era inevitável. Recompunham-se os dois com maçãs e batatas fritas, milk sheiks e poções mágicas. O próximo adversário se aproximava e os dois sabiam que quanto antes a dupla atacasse, maior seria a surpresa, e consequentemente maiores as chances de vitória. Mas eis que a luz do quarto se acende. Surpreendido, Guilherme se distrai e numa patada anormal da besta metade urso, metade robô com focinho de cavalo, o mago é mortalmente ferido. Game over.


- Viu o que você fez pai? Você me fez perder. Logo agora que estava quase passando dessa fase. Três horas jogadas fora.

- Exatamente, meu filho. Essas três horas você jamais recuperará. E pelo que percebo, essa fase está longe de acabar.

Guilherme abaixou a cabeça e colocou o controle sobre o console de seu video game. O pedido de desculpas saiu por entre os lábios, quase inaudível, mas com indubtável sinceridade. O pai sentou-se na cama atrás do menino de onze anos e tratou logo de fazer com que o menino não se prolongasse muito em sua dor de arrependimento. Conversaram por alguns minutos. O suficiente para ser uma conversa muito mais esclarecedora do que todas as anteriores. Não pelas respostas que Guilherme dava às perguntas do pai, mas pela falta de continuidade de suas frases. Guilherme falava por monossílabos e quando titubeantemente se extendia, usava gírias desconhecidas para seu pai. Sem contar que por, pelo menos três vezes, assassinara de forma dolosa a própria língua. O fato talvez não mereceria tanta ênfase se Guilherme não fosse filho de um escritor. E o que é o escritor? A resposta mais curta é – aquele que escreve livros – isso até Guilherme poderia deduzir, tanto que ao ser indagado, assim o fez. Mas, o escritor tratou logo de corrigí-lo dizendo – o escritor escreve histórias e não livros – resposta prontamente rebatida com uma outra pergunta – mas, então o que é um livro?

O livro é um produto feito de páginas que contem textos. Os textos contém frases cunhadas com  esmero artesanal, que por seu turno contém palavras. As palavras são agrupadas de acordo com certas afinidades teóricas e necessidades de esclarecimento. São formadas por letras, que quando aproximadas expressam sons produzidos por articulações labiais, linguais, palatares e gutorais, combinadas com nuances de liberação de ar. As letras são feitas de curvas e ângulos desenhados pelas mãos, que são movidas pelo esqueleto, com auxílio dos músculos, que são movidos por impulsos elétricos originados no cérebro, que quando decifrados, são chamados de desejo, alegria, dor, consternação, surpresa, sapiência, arrogância, ódio e gana. À combinação desses estímulos, somados a muitos outros, damos o nome de conhecimento. O conhecimento é adquirido com a leitura de muitas histórias que constam em livros, fabricados por livreiros, que assim como os escritores, são formados pela união dos gametas de seu progenitores, popularmente conhecidos por pai e mãe. Estes são seres que tem, ou pelo menos deveriam ter, a incubência de exemplificar aos seus filhos, como adquirir tais conhecimentos para que possam se tornar cidadãos comprometidos com sua sociedade, tanto do ponto de vista ético, quanto moral.

Terminado o mini seminário, o pai olhava seu filho descrente de que algo havia sido aprendido. Sentiu-se até mesmo pedante, mas se algo deveria ser ensinado, não seria através da força. O garoto de cabeça baixa, mais uma vez sussurrou por entre os lábios:
– Você nunca jogou video game .

Sem complicar

Ela caminhava alegremente pelo espaço destinado às pessoas que não possuíam aparelhos de locomoção por força motora autônoma e artificial quando avistou aquele que num certo período indeterminado e não presente de vinte e quatro horas viria a ser o ser que a assumiria como a única com a qual ele teria uma relação de fidelidade para fins de sentimentos nobres e geração de seres menores apenas em tamanho e de características genéticas oriundas da combinação das suas e que levariam parte da composição de seus desígnios fonéticos.


Ele gostou dela e a desejou.

Ela não conseguia concatenar um processo sequer de sinapses bem sucedidas que implicassem em resultados satisfatórios do ponto de vista da ausência absoluta de qualquer razão que fosse capaz de resumir o volume inestimável de sensações corpóreas que se acumulavam naquelas três repetições de centena de segundos subseqüentes.

Ele tomou a iniciativa e foi falar com ela.

O processo de inalação e eliminação do elemento gasoso fundamental para a manutenção da vida ganhou sincronia desproporcional ao habitual nas vias condutoras do invólucro carnal daquela representante do gênero superior. Percebeu que já não era a principal condutora dos movimentos do sistema articulado.

Ele segurou a sua mão e curvou-se até tocar-lhe seus lábios na branca tez.

Para ela a propagação da energia que emanava do corpo celestial maior desapareceu e apenas a ausência poderia ser captada pelos seus dispositivos perceptivos.

Ele a segurou e com um copo de água trouxe-lhe de volta à consciência.

Ela dirigiu-lhe uma formação simples de palavras em tom interrogativo a respeito do sucedido.

Um mau súbito apenas.

Jamais se daria por plena a proposição do cavalheiro. Procurou auxílio profissional daqueles cujo ofício é reorganizar os pensamentos e domar os impulsos, mas nenhuma proposta de resolução de dúvidas foi bem aceita. Restava-lhe as palavras sugestivas daquele ser que mais estimamos por ter nos gerado, parido e alimentado até que ganhássemos auto suficiência e responsabilidade sobre nossos atos. Foi um hiato temporal que não contabilizou mais do que duas vezes a centena de milésimos:

- É o amor, minha criança.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Assim é covardia



Conversava um dia desses com um grande amigo meu sobre um dos assuntos "menos recorrentes" em nossos encontros: O futebol. Falávamos de grandes jogadores, grandes equipes, formações históricas, grandes decepções e alegrias, quando ele me indagou a respeito da minha escalação de uma seleção brasileira imbatível, mesmo que o futebol não nos permita fazer tais prognósticos, pois é dentre todos os esportes o mais imprevisível e o único que desafia a lógica de peito aberto. A pergunta de meu amigo foi provocativa, pois ele já trazia a sua escalação de uma seleção bem melhor do que a minha, sendo ele maior conhecedor da história do futebol do que eu.

- Só vale escalar os vivos, mesmo veterano ou ex-jogador. Só os vivos.

Depois que ele ditou as regras que claramente o beneficiariam, eu não tive escolha senão apelar covardemente para a escalação mais fantástica que este país já viu.

- Pois está bem. Escalarei meu time, mas não quero ser interrompido e você só poderá contestar quando eu terminar, fechado?

- Fechado.

Lá fui eu:



Goleiro: Pedro Luis e a parede seriam intransponíveis por razões óbvias. Camisa 1.

Lateral direito: Envergando a camisa dois estaria o filho do grande João, o Diogo Nogueira, com muita vitalidade e liberdade para subir ao ataque, pois seus cruzamentos sempre acabam lavando os adversários à loucura. Tal pai, tal filho.

Zagueiro central: No comando da zaga ninguém menos do que o grande Zeca Pagodinho, que manda na cozinha e não tem medo de cara feia. Se tiver que espanar, espana. Joga simples e sabe tudo. Camisa 3.

Quarto zagueiro: Ao lado de Zeca, a experiência é fundamental e o nome ideal para ocupar a vaga é de Martinho da Vila, com sua classe e requinte para sair jogando com segurança, tranqüilizando o resto da zaga. Camisa 4.

Lateral esquerdo: Conhecido como Pinduca, o homem da voz de Deus, Milton Nascimento é absoluto na posição, pois na lateral esquerda precisamos de alguém com raça e coração jovem, que chegue sempre ao fundo e surpreenda a zaga adversária, como um trem mineiro. Camisa 6.

Médio volante esquerdo: Toquinho é o nome. Seus lançamentos precisos de longa distância nos proporcionariam contra ataques mortais, sem contar a sua categoria e experiência para fazer o tempo correr. Camisa 8.

Médio volante direito: Com mais liberdade para atacar do que o companheiro da esquerda, João Bosco seria o formiguinha, o incansável, o falador e capitão do time por sua habilidade com diversas línguas (algumas desconhecidas do grande público), mas com a perspicácia e visão de jogo inigualável. Não seria o carregador de piano, pois é muito habilidoso para isso, mas ajudaria no combate no meio de campo. Camisa 5.

Meia-armador: Quem joga nesta posição precisa enxergar o campo inteiro. É o famoso maestro que joga de cabeça erguida com elegância e classe inigualável, de passes precisos e inversões de jogo, tem também grande poder de finalização. Precisa saber se movimentar sem a bola e quando o time está ganhando dita o ritmo. Só pode ser o Paulinho da Viola. Camisa 10.

Ponta direita: Nosso time é ofensivo e joga com pontas bem abertos, para evitar a retranca adversária. Na direita o azougue Djavan, criando jogadas tão complexas que atordoam seus marcadores e levam a galera ao delírio, relembrando os tempos do romantismo no futebol. Camisa 7.

Centroavante: Centroavante que se preza tem que ser tão goleador quanto polêmico. Vive de gols, mas quando faz belas jogadas se torna inquestionável. Quem se não Gilberto Gil para ser nossa esperança de goleadas? Com ele a festa é garantida. Camisa 9.

Ponta esquerda: Posição quase extinta no futebol moderno, mas que tem neste representante todos os pré-requisitos para que seja escolhido como o melhor do time. Inteligência, rapidez de raciocínio, habilidade ímpar, ginga e molejo, irreverência, malandragem, cara de pau, coragem e acima de tudo, amor ao futebol. Chico, com a camisa 13. É o único que terá total liberdade dentro de campo, sem a obrigação de marcar a saída de bola do adversário, mas ele marca assim mesmo só de birra.

No banco de suplentes estarão:

12 – Arlindo Cruz (goleiro)

15 – Jorge Aragão (zagueiro)

16 – Jorge Benjor (centroavante)

17 – Dudu Nobre (atacante)

171 – Dicró (malandro)

45 – Caetano Veloso (Curinga)

19 – Ney Matogrosso (lateral esquerdo)

É tanta responsabilidade comandar uma seleção dessas que escolhi dois técnicos com vasta experiência e sabedoria: Monarco da Portela e Nélson Sargento da Mangueira. Dizem que a sintonia entre eles é fina e quando se juntam não tem para ninguém.

- Pronto. Esta é a minha seleção.

Meu amigo ficou me olhando e não disse nada de imediato. Bebericou seu copo de cerveja; olhou para o último croquete que restou da porção, partiu-o ao meio e mastigou devagar, tentando ganhar tempo para pensar em uma saída. Levantou-se, tirou um dinheiro do bolso e jogou na mesa:

- Não dá. Assim fica difícil.

Foi embora tão inconsolável que nem sequer se despediu.


Fotos: Lisandra Arantes

Psicoliteratura



Adaílson sempre foi o melhor aluno de todas as escolas por onde passou. Era naturalmente bom em todas as matérias e nunca precisou dedicar muitas de suas horas aos estudos, como faziam os seus colegas de classe. Tinha predileção por português, pois aprendera a ler e escrever sozinho aos dois anos de idade. Aos seis já havia publicado seu primeiro livreto de contos e aos dez já ensaiava suas primeiras poesias. Gostava de Drummond e de Manuel Bandeira, mas seu preferido era o José de Alencar. Nos seus aniversários, os brinquedos que ganhava não recebiam a menor atenção. Porém quando um melhor observador o presenteava com um livro, a euforia era de causar espanto. Tornou-se seletivo com a leitura e já fazia vista grossa para misticismos e esoterismos baratos. Na sua adolescência não tinha muitos amigos, o que era uma preocupação constante de seus pais, que certamente se orgulhavam muito de ter um filho tão dedicado à literatura, mas também temiam que a falta de uma sociabilidade maior pudesse trazer-lhe problemas no futuro. Por diversas vezes tentaram convencer-lhe a sair e fazer amigos, até mesmo traziam os “amigos” à sua casa, mas como não recebiam quase que nenhuma atenção logo iam embora, o que deixava seu pai um tanto nervoso:


- Você não pode pensar que a vida está apenas nesses livros. Se não fizer amigos, não socializar, jamais terá uma família e acabará sozinho!

Adaílson respondia com certo grau de superioridade:

- Não me interessam as efemeridades, apenas a imortalidade.

Adaílson foi se tornando cada vez mais recluso e praticamente suas únicas companhias eram seus livros e sua velha máquina de escrever. Já fazia todas as refeições em seu quarto e de lá poucas vezes saiu, duas delas para ir aos enterros do pai e da mãe. A idéia de imortalidade foi se transformando em uma obsessão. Falava em se candidatar a membro imortal da Academia Brasileira de Letras, mas após algumas nomeações duvidosas, desenganou-se e passou a se dedicar ao que chamava de imortalidade no sentido real da palavra. Queria que seu corpo fosse se transformando aos poucos em prosas, versos, poemas e contos. Queria transcender a matéria e para isso seu corpo era um estorvo. Estava absorto e catatônico para o mundo enquanto que para as letras cada vez mais vivo. Quanto mais escrevia, mais próximo à imortalidade acreditava chegar. Aos trinta e tres anos de idade, já fraco e debilitado, começou a escrever seu último poema em vida:

Joga a rede o pescador

vai buscar buscador

Traz a vida que sacia

pro susteio da famia

Lamenta a falta da fartura

enxuga logo as amargura

E antes que pudesse chegar ao fim do poema, seus fracos pulmões, tomados pelos fungos causados pela terrível umidade do seu quarto, sucumbem e o sufocam.

O jovem Josias, apanhado por uma súbita volúpia literária, debruça-se sobre a carteira em sua sala de aula, durante uma maçante aula sobre a história do descobrimento do Brasil, e segurando a cabeça com uma das mãos abre seu caderno na última folha e começa a rabiscar as linhas curtas do seguinte poema:

Joga a rede o pescador

vai buscar buscador

Traz a vida que sacia

pro susteio da famia

Puxa firme para a areia

hoje tem barriga cheia

Sofre o peixe em sua dor

pescador pesca a dor.

Os olhos de Josias Damaceno se reabriram ao pequeno mundo à sua volta. Com a mão esquerda ainda quase adormecida, fechou seu caderno. A esta altura já falavam das capitanias hereditárias.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Promessa definitiva

Pode a noite não escurecer, o sol congelar, a cigarra não cantar e o seresteiro ficar rouco, mas dela eu não largo. E se a história não tiver mais passado e nem o futuro for mais lembrado, as andorinhas se extinguirem e o presente não acontecer, pelo menos dela eu não largo. Por que a cana pode ser salgada assim como os carrapatos habitarem as geleiras da Sibéria, e a tia não ser mãe do primo, mas largar dela eu não largo. Nem que o ateu mais convicto cresse na providência divina no instante da queda do avião, que a corda arrebentasse para o lado do mais forte, que a sopa de galinha tivesse postas de salmão, dela eu jamais largarei. Mas se pensas que calando o surdo no samba e substituindo os jogadores de futebol por pregos gigantes no gramado, além de subtrair do povo suas esperanças de igualdade me farás dela desistir, estás ao todo enganado. Pois minha mãe vai deixar de me amar, meu pai me deserdar; meus irmãos, a mim, trair e minha mulher me abandonar, mas dela, a caneta, jamais vou largar.

A vida é só um detalhe

Era no apartamento setenta e dois que morava o senhor Benevides, viúvo há pelo menos dez anos e tido por todos como um mistério insolúvel, pois após a morte de sua amada Judite, nunca mais pusera o nariz para fora de casa. Jamais atendia ao telefone, que tocava insistentemente, várias vezes por dia, irritando aos vizinhos que até cogitavam reclamar, mas achavam por bem respeitar o desejo de solidão do pobre viúvo. Suas refeições eram entregues por uma pensão, que atendia também outros apartamentos, mas no caso do senhor Benevides a entrega era feita pelo pequeno elevador manual, com o qual içava os potes de comida e também efetuava o pagamento com exatidão, centavo a centavo. Sebastião, o entregador de marmitas, afirmava que às vezes era possível ver as mãos do senhor Benevides, mas eram apenas relances que não possibilitavam uma análise mais meticulosa. Eram apenas mãos, mas o misterioso viúvo e sua reclusão atiçavam o imaginário dos condôminos, que passavam o tempo a bolar maneiras de conseguir qualquer tipo de registro do velho que certificasse sua existência, como fotografias (praticamente impossíveis, pois ele nunca se mostrava), gravações feitas ao rodapé da porta de seu apartamento (tentativas inócuas, pois a porta era completamente vedada) e até uma micro-câmera tentaram infiltrar pela janela, porém as cortinas estavam sempre cerradas. Até um mercado negro foi criado, por onde circulavam fotografias montadas, gravações forjadas e bilhetes supostamente escritos pelo aposentado, mas um artefato em especial intrigava a todos e seu valor era inestimável, segundo o seu dono. Aconteceu mais ou menos uma semana após a morte de Judite, quando a vizinhança sempre acostumada à sua presença de espírito do sempre bem-humorado senhor Benevides, começou a suspeitar de sua longa ausência. A hipótese de uma viagem foi prontamente descartada, pois as refeições além de entregues eram pagas religiosamente. Embora quase todos tenham batido à sua porta sem sucesso. Eustáquio, parceiro inseparável de carteado, insistiu a ponto de fazer vigília em frente ao apartamento do amigo. Por ter uma idade já avançada, às vezes era vencido pelo cansaço e ausentava-se de corpo presente. Porém, numa ocasião acordou com o bater da porta de Benevides. Ele acabara de estar ali, do lado de fora, bem na cara do amigo e ele não o viu. Mas como até o crime perfeito deixa vestígios, o senhor Eustáquio examinou a cena, revirou o lixo e ali nada encontrou. Ao voltar à frente da porta percebeu um objeto metálico, fosco, caído ali no chão. Era uma chave. Abaixou-se na velocidade de um velho apressado e apanhou aquele objeto que hoje poderia representar a sua independência financeira. Testou a chave na fechadura e o encaixe foi tão perfeito quanto uma faca pontiaguda fincada em um pote de manteiga. Virou à chave para esquerda com a sutileza de quem segura a mão de um recém-nascido e lá estava Eustáquio com a porta destrancada à sua frente. Levou a mão à maçaneta, mas antes de entrar ponderou que abri-la seria mais do que adentrar o apartamento do amigo, mas romper a barreira invisível do respeito e da honra, valores dos mais apreciados pelo ser humano que atinge a pós-maturidade. Neste caso o respeito foi muito mais forte do que a curiosidade e venceu a batalha. Eustáquio retirou suavemente a chave da fechadura, enfiou-a em seu bolso e deu a vigília por encerrada, tornando-se a partir daí o guardião do segredo por todos esses anos. Muitas foram as ofertas pela relíquia, mas a resposta sempre única e inabalável rejeitou até o apartamento da cobertura do prédio em que morava com a filha única Lourdes, que nunca se casou, tampouco teve filhos e não se conformava com a queixodurisse do pai. Lourdes já mal lhe dirigia a palavra quando naquela manhã de estranheza coletiva na praça onde não houve carteado, pois Eustáquio definitivamente desistira de acordar. Lourdes chorou sorrindo e mudou-se para a cobertura. O segredo já não era mais dela e nem do senhor Benevides, flagrado pelos condôminos, sentado ao lado de sua eterna esposa que pingava formol sobre a mesa posta.