Parece senso comum falar em uma
paixão e ter apenas o coração na condição de representante oficial e símbolo
único do arrebatamento humano. Contudo, urge a necessidade de que se faça
justiça aos menos louvados componentes corpóreos, que talvez devido à pouca
aptidão poética, são relegados a segundo plano, quando não esquecidos. Para o melhor
entendimento, tomarei como demonstrativo a descrição da formação do corpo e
alma de um Portelense, o que aparentemente não causaria, ou não deveria causar,
nenhum tipo de surpresa aos estudiosos da matéria, das ciências biológicas,
tampouco aos poetas que não ousam desafiar regras estabelecidas por quem nada
entende da capacidade que tem o amor de transcender os limites fixados pela
obsessão de uma verdade material.
Tudo começa no sono de uma gestante,
que ao adormecer recebe a visita de uma águia de luz, que por seu turno
gentilmente pousa sobre a barriga repleta de anseios e sonhos em forma de um
embrião, que nem sequer ainda fora notado por máquinas e emissores de ondas
sonoras. O pouso da águia de luz de tão leve e sutil acaricia e aquece o ventre,
transmitindo uma sensação inigualável de conforto e bem estar. Tais sensações
são fundamentais para o passo seguinte, pois os mais incautos podem vir a
sentir uma certa angústia com a descrição. É, contudo, importante que se diga
que tudo se passa num plano entre o corpo e a alma, exatamente onde os olhos
humanos ainda não foram capazes de alcançar, pois lá as emoções fazem morada.
Sentada sobre a barriga da gestante,
a águia de luz curva-se, como se fizesse uma reverência, e com a precisão
inigualável da ponta de seu bico toca a camada mais fina da pele do peito, no
ponto exato entre os seios, fazendo um corte vertical absolutamente indolor. O
procedimento se repete até que a última camada seja também rompida expondo
assim o órgão pulsante. A águia faz do coração seu banquete, saciando sua fome
e cumprindo seu ritual. Nenhuma artéria é tocada, nenhuma veia é rompida, pois
tudo deve ser preservado para que a transição seja bem sucedida.
A cavidade toráxica, por ora vazia,
transforma-se em ninho e ali a águia de luz deposita um ovo que irá chocar por
enquanto durar ainda o sono da gestante, que não corre qualquer risco de vida,
pois a ausência do coração é suprida por uma ligação provisória com o coração
da águia por meio de um fio condutor que faz com que o sangue ainda vermelho
continue circulando, irrigando cada milímetro do corpo adormecido.
Finalmente o ovo se quebra, nasce um
filhote um pouco desengonçado, mas não menos iluminado, que prontamente se
conecta às artérias e veias e que começa a bater as asas de forma a fazer com que o agora sangue azul,
vá aos poucos se misturando ao vermelho e à medida que vai sendo filtrado,
apenas o azul permanece. Completado o processo, formam-se rios de forte
correnteza e afluentes de sangue azul que banham cada célula do corpo com
dignidade, elegância, respeito e muito samba. O feto passa a ser alimentado via
cordão umbilical por todos estes nutrientes até que seu coração já esteja
também ao ponto de ser devorado pela águia que pulsa no peito da mãe e substituído
por sua própria águia de luz.
No cérebro
formam-se tempestades de relâmpagos e trovões que reverberam nos confins dos
membros e nas floras distintas, despertando a sanha guerreira e caçadora que
retorna ao coração, completando o ciclo incessante de retroalimentação.
A águia de
luz, ao certificar-se de que o funcionamento do novo corpo já é autônomo,
mastiga o corte, juntando os dois lados rasgados da pele e finaliza derramando
uma lágrima que além de eliminar quaisquer impurezas que possam querer se
aproveitar da oportunidade, também produz uma cicatrização tão perfeita que é
imperceptível a olho nu. A águia de luz alça seu vôo e vai em busca de outras
gestantes enquanto que aquele corpo ao despertar pela manhã nada sente, senão
uma pontada nostálgica e um desejo irresistível de poesia que só se sacia
quando se chega à Portela.
Quando enfim
o corpo fenece, como um ovo ele é rompido e a águia de luz que ali vivia se
liberta, buscando outras gestantes, continuando o ciclo da transformação em
algo maior. Transcendendo a morte. Semeando a vida.