domingo, 7 de agosto de 2016

Breve e Doce Redenção

     
Geralmente as cerimônias de abertura e encerramento de grandes eventos como copa do mundo e olimpíadas são cheias de representações estereotipadas de cultura, de nacionalismo exacerbado e até mesmo demonstrações genuínas de amor ao esporte e seus valores. E no decorrer das competições vemos histórias de superação tanto nas vitórias quanto em derrotas. O roteiro não varia tanto, mas ainda tem a capacidade de nos emocionar. Porém, a imagem mais importante dos jogos não envolveu disputa por nenhuma medalha. Quando subiu ao palco trazendo consigo o violão, vestido de azul, mas não qualquer azul, mas o inconfundível Azul, com letra maiúscula sim por se tratar da Portela, Paulo César Batista de Faria da Viola fez muito mais do que cantar o hino nacional. Dois dos símbolos sequestrados por usurpadores, vulgarizados e transformados em armas de uma guerra covarde contra aqueles representados justamente pela arte que consagrou a Paulinho da Viola e tantos outros. Ao cantar o hino daquela forma tão elegante, sutil e carinhosa, Paulinho nos acariciava como se estivéssemos deitados no colo de um pai ou avô amoroso que sabe que nossos arroubos e inquietudes são passageiras. Isso é coisa de quem já passou pelas tormentas em alto mar, mas nunca se furtou a navegar. Estava ali o nosso timoneiro. A bandeira subia timidamente, quase envergonhada, assumindo uma culpa de Geni que claramente não é sua. Por pouco não chega ao topo, pois as mãos fardadas que a conduziam pareciam também estar em total descompasso com a falta de vigor, rigidez e marcação marcial. Era uma música estranha para ouvidos duros, todavia familiar aos tímpanos educados na síncopa e surdo de terceira. Os símbolos de uma pátria foram retomados e devolvidos a quem lhes é por direito, mesmo que por breves minutos, mas que sem a menor dúvida, estarão eternizados para nós e para os olhos de todos que pelo mundo afora assistiam a vitória da ginga sobre a ordem, do diálogo sobre o silêncio forçado, da viola sobre o cacetete. Por uns breves minutos fomos redimidos. Obrigado Paulinho da Portela, das Marias e Joãos, do Azul e Branco, do Verde e Amarelo, da Viola, Cavaco, Pandeiro e Tamborim, do Vasco da Gama, do Rio de Janeiro. Das Umbandas, Candomblés e todas as fés. Obrigado Paulinho do Brasil.   

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Vovó Quitéria


Salve minha vovó
Sua benção lhe peço
De olho no chão que piso onde vejo seus pés
Anuviam meus olhos na fumaça do seu cachimbo
que me leva em pensamento aos tempos de seus cantos
Cantos de dor, de luta e esperança 
Cantos de cantar
Vem do teu berço o mundo que vejo
Vai ao seu encontro a prece que faço
Afasta de mim os que me querem mal
Me embala na sua dança e me guia depois da curva
Aonde eu for serás levada na minha voz
E na hora que a luz findar, venha me buscar
Pois de ti sou fruto
Por ti me faço presente
desde ontem e por quanto tempo o hoje durar.  

domingo, 16 de agosto de 2015

Portela céu e chão



Okê Arô
Com sua licença preciso contar
O que dos meus olhos cheios d'água não se pode apagar
O que os meus ouvidos ainda podem escutar
O que minha pele se arrepia só de lembrar
As pernas que sambaram ainda bambeam
Em espasmos sincopados regidos pela sublime arte
E as vozes que o anunciam, afirmam
Que nunca será demais, que jamais é tarde
Para reviver Candeia
Com o samba, que de tão nobre, se faz de humilde e o homenageia
Na sua eterna casa, seu quintal e terreiro
O ninho da águia, seu amor primeiro
Onde também chorou suas mágoas e viveu sua dor
Mas sempre munido de fé, poesia e sua cor
É daqueles que tanta falta nos faz, ao passo que tão sagrada é a sua presença
Sentimentos expressos harmoniosamente na mesma sentença
Percebidos por cada um dos convidados de sua festa bela
Seus oitenta anos comemorados na Portela
Uma noite que não sairá da memória
Dos que tiveram a honra e glória
De cantar à sua vida, à Portela. De viver e contar a nossa História.


quarta-feira, 10 de junho de 2015

No Recital



Palavra na parede

ganha vida de paisagem

Se é lida é oferenda

Já que do prego não se espera muito

a não ser fingir-se de morto

Qualquer palavra vale

Mesmo as descharmosas

Há algumas que são ótimas para serem cantadas

Como a Zabumba e o Bumbo

A Zabumba e o Bumbo dão música pura da boa

Já o pronome só serve para recosto

Ontem dormiram no pronome

De tão cansados que ficaram

de cantar Zabumba e Bumbo

Agora é hora de lua seca

Dia de fazer parede feliz

Parede gosta de carinho

de afago doce de molhar de amor os olhos da menina

Pode ser com estilo, batuque e papo

Ou pode ser com língua, unha e saliva

Quando a parede se cansa recosta no pronome

Não precisa ser pronome belo

Mas que sirva de colo bom pra cafuné

Qual?

Longe de quem fala e de quem ouve

Mas qual?

De passado ou futuro distantes

Qual?

Aquele

Qual aquele?

aquele Aquele.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

#libertemaspalavras#


#Compreiumafazenda#naotemvacanemboi#naotemcavaloalgum#sotempalavras#palavrasselvagens#porissomandeiprender#mandeifazercerquilha#prapalavranaofugir#aspalavrasficamdoceis#saodoceismasqueremserlivres#palavracercadamorreinfeliz#palavrainfeliznaopodeserdita#palavraquerserdita#tiremascercasdaspalavras#tiremascercasdaspalavras#vendominhafazendadepalavras#palavraapartirdeagoraseralivre#vivaapalavralivre#abaixoascercas# e lá se vai a palavra...palavr...palav...pala...pala..pa...p... ...

domingo, 12 de abril de 2015

Procura-se arte. Paga-se nada.



Eles dizem sim

Sim, claro que sim

É isso que queremos

Sim, sim e sim

Os outros dizem não

Não é nada disso

Não queremos isso não

Não, não e não

Eles respondem não que nada

Os outros insistem

Não é não

Eles teimam

É sim, não o não.

Os outros retrucam

Não, não é sim

Não é não e não o sim

Nananinanão

Eles questionam como assim não é sim?

Sim jamais é não e nunca será

Os outros gritam não!

Eles sussurram sim.

Os outros berram não!

Eles se calam sim

Os outros não se calam

Eles batem panelas não

Os outros batem panelas sim

Odeiam em não

Vivem loucamente não

Os outros não pensam não

Não querem sim

Não sabem nada sim

Eles queriam sim

Mas dormem sim e

Os outros não passam não

Ainda não

Eles ainda vivem sim.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Que venha o Samba



Chegou ao fim o carnaval
Alegrias e dores cruzaram a avenida
Tão breve como um vendaval
Até o próximo levará mais de uma vida
Mas não hei de reclamar
Nem chorar por uma derrota fugaz
Agora recomeça a rotina de quem gosta do bom samba
Que hoje em dia quase não se mais faz
Pois quem gosta de samba
Dele nunca vai se cansar
Vai aonde ele nasce
Num terreiro ou num bar
O bom samba é a arte
Da mais pura vivência
Apesar de quem queira
Desdenhar de sua essência
E não há alegoria
Fantasia ou adereço
Que vença a força do samba
Dignidade não tem preço
Vem lá de Madureira
E vem lá de Osvaldo Cruz
Essa gente tão festeira
Com poesia que seduz
Perdoem a sinceridade
Mas não há coisa mais bela
Que um samba de verdade
Que brota no chão da Portela

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Não Larguem Suas Fantasias




Há um silêncio no ar que de tão denso corta-se com uma faca.
É a ansiedade que precede o acontecimento preparado por muitas mãos, cabeças e corações e que mesmo os mais experientes e esperançosos ainda não são capazes de fugir.
Não se pode saber quantos milhões de olhos estarão voltados para aqueles setecentos metros de comprimento por onde passarão os devaneios concretizados por artistas famosos que ganham vida nos corpos anônimos em nome da celebração da alegria, da crítica marota e principalmente, da arte de rir na cara da realidade imperiosamente dura.
Durante o ano que antecedeu este momento, por várias vezes, acordado ou não, via a mim mesmo, como se estivesse sobrevoando a avenida, fantasiado e em pleno estado de êxtase sambando e vivendo o sonho de contribuir diretamente para a realização não de um sonho, mas uma meta, que é ver a Portela após tantos anos sagrar-se novamente campeã do maior carnaval do planeta.
Felizmente, eu não sonho sozinho. Milhares, muitos milhares além daqueles que a escola pode comportar, sonham junto comigo.
Ainda houve um último suspiro de esperança quando surgiu a possibilidade de substituir alguém que, de última hora, viesse a desistir. Meu coração se tornou enorme para meu pequeno peito e várias horas de sono foram dignamente sacrificadas com o sonho desperto no qual, mesmo deitado em minha cama, sambava e cantava o samba malandro que rasgava seu curso até a Apoteose.
Mas como posso substituir alguem que desiste desse privilégio? Haverá alguém capaz de declinar de tal honraria? Na minha modesta opinião, só quem estiver morto, e assim mesmo se for um morto não Portelense, pois Clara, Candeia, Dodô, Caetano, Paulo, Rufino, Manacéa, Doca, Natal e muitos outros cumprirão com sua obrigação e marcarão presença.
A Portela transbordou e ao transbordar estendeu a avenida para as arquibancadas, frisas, camarotes, ruas, calçadas e sofás. Todos, sem demagogias e exceções, serão fundamentais para a conquista do bem maior.
Portanto, aos fantasiados, não ousem desistir. Sambem como se fosse o último samba de suas vidas. Pintem a vida em azul e branco e façam da avenida o rio que nunca deixará de passar em nossas vidas, mentes e corações.
Salve a Portela!

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Anatomia da Alma Portelense




Parece senso comum falar em uma paixão e ter apenas o coração na condição de representante oficial e símbolo único do arrebatamento humano. Contudo, urge a necessidade de que se faça justiça aos menos louvados componentes corpóreos, que talvez devido à pouca aptidão poética, são relegados a segundo plano, quando não esquecidos. Para o melhor entendimento, tomarei como demonstrativo a descrição da formação do corpo e alma de um Portelense, o que aparentemente não causaria, ou não deveria causar, nenhum tipo de surpresa aos estudiosos da matéria, das ciências biológicas, tampouco aos poetas que não ousam desafiar regras estabelecidas por quem nada entende da capacidade que tem o amor de transcender os limites fixados pela obsessão de uma verdade material.

Tudo começa no sono de uma gestante, que ao adormecer recebe a visita de uma águia de luz, que por seu turno gentilmente pousa sobre a barriga repleta de anseios e sonhos em forma de um embrião, que nem sequer ainda fora notado por máquinas e emissores de ondas sonoras. O pouso da águia de luz de tão leve e sutil acaricia e aquece o ventre, transmitindo uma sensação inigualável de conforto e bem estar. Tais sensações são fundamentais para o passo seguinte, pois os mais incautos podem vir a sentir uma certa angústia com a descrição. É, contudo, importante que se diga que tudo se passa num plano entre o corpo e a alma, exatamente onde os olhos humanos ainda não foram capazes de alcançar, pois lá as emoções fazem morada.

Sentada sobre a barriga da gestante, a águia de luz curva-se, como se fizesse uma reverência, e com a precisão inigualável da ponta de seu bico toca a camada mais fina da pele do peito, no ponto exato entre os seios, fazendo um corte vertical absolutamente indolor. O procedimento se repete até que a última camada seja também rompida expondo assim o órgão pulsante. A águia faz do coração seu banquete, saciando sua fome e cumprindo seu ritual. Nenhuma artéria é tocada, nenhuma veia é rompida, pois tudo deve ser preservado para que a transição seja bem sucedida.

A cavidade toráxica, por ora vazia, transforma-se em ninho e ali a águia de luz deposita um ovo que irá chocar por enquanto durar ainda o sono da gestante, que não corre qualquer risco de vida, pois a ausência do coração é suprida por uma ligação provisória com o coração da águia por meio de um fio condutor que faz com que o sangue ainda vermelho continue circulando, irrigando cada milímetro do corpo adormecido.

Finalmente o ovo se quebra, nasce um filhote um pouco desengonçado, mas não menos iluminado, que prontamente se conecta às artérias e veias e que começa a bater as asas de forma a fazer com que o agora sangue azul, vá aos poucos se misturando ao vermelho e à medida que vai sendo filtrado, apenas o azul permanece. Completado o processo, formam-se rios de forte correnteza e afluentes de sangue azul que banham cada célula do corpo com dignidade, elegância, respeito e muito samba. O feto passa a ser alimentado via cordão umbilical por todos estes nutrientes até que seu coração já esteja também ao ponto de ser devorado pela águia que pulsa no peito da mãe e substituído por sua própria águia de luz.

            No cérebro formam-se tempestades de relâmpagos e trovões que reverberam nos confins dos membros e nas floras distintas, despertando a sanha guerreira e caçadora que retorna ao coração, completando o ciclo incessante de retroalimentação.

            A águia de luz, ao certificar-se de que o funcionamento do novo corpo já é autônomo, mastiga o corte, juntando os dois lados rasgados da pele e finaliza derramando uma lágrima que além de eliminar quaisquer impurezas que possam querer se aproveitar da oportunidade, também produz uma cicatrização tão perfeita que é imperceptível a olho nu. A águia de luz alça seu vôo e vai em busca de outras gestantes enquanto que aquele corpo ao despertar pela manhã nada sente, senão uma pontada nostálgica e um desejo irresistível de poesia que só se sacia quando se chega à Portela.

            Quando enfim o corpo fenece, como um ovo ele é rompido e a águia de luz que ali vivia se liberta, buscando outras gestantes, continuando o ciclo da transformação em algo maior. Transcendendo a morte. Semeando a vida.