quinta-feira, 1 de julho de 2010

Promessa definitiva

Pode a noite não escurecer, o sol congelar, a cigarra não cantar e o seresteiro ficar rouco, mas dela eu não largo. E se a história não tiver mais passado e nem o futuro for mais lembrado, as andorinhas se extinguirem e o presente não acontecer, pelo menos dela eu não largo. Por que a cana pode ser salgada assim como os carrapatos habitarem as geleiras da Sibéria, e a tia não ser mãe do primo, mas largar dela eu não largo. Nem que o ateu mais convicto cresse na providência divina no instante da queda do avião, que a corda arrebentasse para o lado do mais forte, que a sopa de galinha tivesse postas de salmão, dela eu jamais largarei. Mas se pensas que calando o surdo no samba e substituindo os jogadores de futebol por pregos gigantes no gramado, além de subtrair do povo suas esperanças de igualdade me farás dela desistir, estás ao todo enganado. Pois minha mãe vai deixar de me amar, meu pai me deserdar; meus irmãos, a mim, trair e minha mulher me abandonar, mas dela, a caneta, jamais vou largar.

A vida é só um detalhe

Era no apartamento setenta e dois que morava o senhor Benevides, viúvo há pelo menos dez anos e tido por todos como um mistério insolúvel, pois após a morte de sua amada Judite, nunca mais pusera o nariz para fora de casa. Jamais atendia ao telefone, que tocava insistentemente, várias vezes por dia, irritando aos vizinhos que até cogitavam reclamar, mas achavam por bem respeitar o desejo de solidão do pobre viúvo. Suas refeições eram entregues por uma pensão, que atendia também outros apartamentos, mas no caso do senhor Benevides a entrega era feita pelo pequeno elevador manual, com o qual içava os potes de comida e também efetuava o pagamento com exatidão, centavo a centavo. Sebastião, o entregador de marmitas, afirmava que às vezes era possível ver as mãos do senhor Benevides, mas eram apenas relances que não possibilitavam uma análise mais meticulosa. Eram apenas mãos, mas o misterioso viúvo e sua reclusão atiçavam o imaginário dos condôminos, que passavam o tempo a bolar maneiras de conseguir qualquer tipo de registro do velho que certificasse sua existência, como fotografias (praticamente impossíveis, pois ele nunca se mostrava), gravações feitas ao rodapé da porta de seu apartamento (tentativas inócuas, pois a porta era completamente vedada) e até uma micro-câmera tentaram infiltrar pela janela, porém as cortinas estavam sempre cerradas. Até um mercado negro foi criado, por onde circulavam fotografias montadas, gravações forjadas e bilhetes supostamente escritos pelo aposentado, mas um artefato em especial intrigava a todos e seu valor era inestimável, segundo o seu dono. Aconteceu mais ou menos uma semana após a morte de Judite, quando a vizinhança sempre acostumada à sua presença de espírito do sempre bem-humorado senhor Benevides, começou a suspeitar de sua longa ausência. A hipótese de uma viagem foi prontamente descartada, pois as refeições além de entregues eram pagas religiosamente. Embora quase todos tenham batido à sua porta sem sucesso. Eustáquio, parceiro inseparável de carteado, insistiu a ponto de fazer vigília em frente ao apartamento do amigo. Por ter uma idade já avançada, às vezes era vencido pelo cansaço e ausentava-se de corpo presente. Porém, numa ocasião acordou com o bater da porta de Benevides. Ele acabara de estar ali, do lado de fora, bem na cara do amigo e ele não o viu. Mas como até o crime perfeito deixa vestígios, o senhor Eustáquio examinou a cena, revirou o lixo e ali nada encontrou. Ao voltar à frente da porta percebeu um objeto metálico, fosco, caído ali no chão. Era uma chave. Abaixou-se na velocidade de um velho apressado e apanhou aquele objeto que hoje poderia representar a sua independência financeira. Testou a chave na fechadura e o encaixe foi tão perfeito quanto uma faca pontiaguda fincada em um pote de manteiga. Virou à chave para esquerda com a sutileza de quem segura a mão de um recém-nascido e lá estava Eustáquio com a porta destrancada à sua frente. Levou a mão à maçaneta, mas antes de entrar ponderou que abri-la seria mais do que adentrar o apartamento do amigo, mas romper a barreira invisível do respeito e da honra, valores dos mais apreciados pelo ser humano que atinge a pós-maturidade. Neste caso o respeito foi muito mais forte do que a curiosidade e venceu a batalha. Eustáquio retirou suavemente a chave da fechadura, enfiou-a em seu bolso e deu a vigília por encerrada, tornando-se a partir daí o guardião do segredo por todos esses anos. Muitas foram as ofertas pela relíquia, mas a resposta sempre única e inabalável rejeitou até o apartamento da cobertura do prédio em que morava com a filha única Lourdes, que nunca se casou, tampouco teve filhos e não se conformava com a queixodurisse do pai. Lourdes já mal lhe dirigia a palavra quando naquela manhã de estranheza coletiva na praça onde não houve carteado, pois Eustáquio definitivamente desistira de acordar. Lourdes chorou sorrindo e mudou-se para a cobertura. O segredo já não era mais dela e nem do senhor Benevides, flagrado pelos condôminos, sentado ao lado de sua eterna esposa que pingava formol sobre a mesa posta.

O povo cacto

Dona Jandira chegara aos sessenta anos de idade com a proeza de nunca ter assistido televisão em toda sua vida. Nunca viu e nem poderia. Comer era mais importante e alimentar uma família de seis pessoas era uma tarefa digna de medalha de honra ao mérito. No meio do deserto, sobre um chão que enxada nenhuma jamais ousou trabalhar, somente a velha pá enferrujada cumpria com sua função de prover a última morada àqueles que a sede e a fome extrema vitimavam. De seis se tornaram três. Um se foi para nunca mais voltar e nada nunca mais se soube a seu respeito. Nada de fotografias na parede, ali a lembrança é tácita e a morte abrevia o sofrimento de quem pretendia criar os filhos para vê-los virar homens feitos. A expectativa de vida é o dia de amanhã se Deus assim desejar. Mas o povo espinhudo e teimoso resiste ao massacre do chão rachado achando água nem que seja a cem léguas de lá, nem que haja mais barro do que água, nem que tenha que dividir com os jegues, calangos e carcaças e voltar com o peso no ombro e na cabeça, sem se avexar porque daqui a dois dias tem mais pernada. O que sabia do mundo sabia de ouvir falar. Mandava o filho moleque de sete anos até a venda na cidade todos os dias não para comprar comida, mas para buscar notícia lá de fora, na única televisão que se sabia existir num raio de mil léguas.


- Que qui ocê fico sabendo? Perguntava a velha mãe.

O moleque até os dez nunca trouxe nada que prestasse além de sonho esquisito de “ir embora para Sumpaulo pra inricá i istudá”, falava sempre antes de dormir. As notícias que interessavam mesmo só começaram a chegar depois dos onze anos de idade. Daí em diante as coisas começaram a mudar. Jeremias, o filho das notícias, já tinha que ir mais vezes lá fora para buscar notícia, estudar e aproveitar para trazer mais comida. Um dia chegou em casa com um brilho diferente nos olhos.

- Ocê ouviu coisa boa hoje? Perguntou a mãe curiosa com a felicidade incomum do filho.

- Eles falaram que vai passar um rio aqui perto de casa.

- Mas ocê tá embestando de novo, tá? E desde quando rio muda de lugar?

As notícias não paravam de chegar. A recém incorporada hora da janta era o momento de compartilhá-las, pois no café da manhã, este não menos recente que a janta, não teriam tempo, pois Jeremias tinha que sair cedo para o trabalho e depois para a escola. Porém um dia, com a boca cheia de macaxera cozida, prometeu à mãe um presente que ela sempre sonhara a vida toda e jamais pensou em ter.

- Eu vou trazer a notícia mais bonita do mundo pra sinhora.

- É, meu fio. Deus te ouça.

E no fim do dia, diante do prato de jerimum com feijão e carne de sol, ele anuncia à mãe que a luz estava para chegar. Ela mais do que calejada pela vida duvidou só se convencendo quando viu os rapazes de chapéu de plástico furando o chão, desta vez não para enterrar, mas para semear as esperanças.

No primeiro jantar à luz de lâmpadas, Dona Jandira fez um pedido ao filho Jeremias:

- Ocê sabe o qui eu mais quiria nessa vida? eu quiria vê as notícia.

- O filho até pensou em levar a mãe até “lá fora” para ver com seus próprios olhos, mas teve uma idéia melhor. Naquele dia demorou-se um pouco mais do que o normal para voltar para casa. A janta já estava pronta e servida sobre o fogão à lenha e nada de Jeremias. Dona Jandira entristecida pela ausência da companhia de sempre na refeição noturna, arrumou seu prato, comeu sozinha e resignada. Já se preparava para dormir, pois teria que acordar as galinhas no dia seguinte para apanhar os ovos quando ouviu um barulho na porteira. Viu o filho entrar em casa com uma caixa nos braços. Não fazia a menor idéia do conteúdo e teve até mais medo do que curiosidade para descobrir.

- Trouxe a notícia pra sinhora, mãe. Agora a senhora vai vê notícia.

O coração bateu mais forte e as mãos calejadas foram levadas a enxugar as lágrimas que formavam um rio que fazia seu curso pelas curvas das rugas do velho rosto, que teimava em não acreditar que o “lá fora” entrava agora em seu lar. Passou a noite em claro, vigiando o presente, que ainda desligado, aguardava pelo dia seguinte quando seria finalmente instalado junto a uma antena UHF. No dia seguinte não houve café da manhã por puro capricho e ansiedade. Jeremias subiu no novo telhado da casa e lá fincou a nova antena, puxando o fio até a caixa de quatorze polegadas, que ficara gigantesca dentro da casinha de dois cômodos, o segundo recém inaugurado. Dona Jandira sentou-se de frente ao televisor com os lábios contraídos e as mãos apertadas entre as pernas, num balançar imaginário da cadeira que não acompanhava os movimentos do corpo. De repente um facho de luz inundou a sua retina e uma tempestade entupiu os seus ouvidos hipnotizando a velha guerreira. Assim ficou por três dias, só saindo dali para fazer suas necessidades e cozinhar. Jeremias chegou do trabalho no terceiro dia e não viu a luminosidade azulada da TV na janela da frente. Temeu que um descuido da mãe houvesse arruinado seu sonho e encontraria a mãe em prantos por ter estragado seu presente. Quando entrou em casa surpreendeu-se com o aparelho desligado e encaixotado.

- Mãe, a senhora tá doida é?

- Ocê vai levar esse troço embora amanhã mesmo.

- Por quê?

- Ocê pensa que sua mãe se engana fácil, né? Da próxima vez me traga notícia e não mentira. Mentira é pecado e tem perna curta.

Dona Jandira não quer nem mais ouvir falar das notícias.

Casa de praia

Não há mais nada que Amâncio possa fazer. Se ao menos não tivesse sido derrotado pela cirrose em decorrência de sua entrega ao etilismo, provocada pela constatação mais que tardia de um amor não correspondido, ou pela estratégia de angariar a pena alheia ao se sabotar, fazendo de sua vida um Oásis de derrotas e desilusões, teria visto netos, com sorte bisnetos, mas apenas seus dois filhos tratariam de conservar o que dele restava, pois após anos de martírio, Lindalva se deu por vencida e foi cuidar da própria vida, que acreditava ainda haver chances de recuperar, mesmo que não plenamente, mas pelo menos sua dignidade, pois por mais falta de companheirismo que pudesse aturar, o desamor jamais seria superado. As promessas de Amâncio jamais se cumpririam, pois faltava a ele o ingrediente principal da receita, a liga, o segredo da nona. Isso ele sempre soube que não seria capaz de dar, a não ser que fosse à Rosália, mas Lindalva o quis mesmo assim, apostando em seus dotes e virtudes, como a paciência, o companheirismo, a disposição para o trabalho e o cuidar, que de certo eram artigos de luxo para qualquer ser humano carente de referências parentais. Não que ela buscasse um marido para suprir-lhe a falta do pai, por que sempre dava conta de suas responsabilidades como ninguém e era tão orgulhosa disso que sentiu uma obrigação de passar adiante, desejando assim seus filhos. Amâncio tinha o perfil do homem forte, pai austero e trabalhador, mas por trás das paredes da fortaleza haveria rachaduras, ervas daninhas, pântanos e um pouco, apenas um pouco de esperança, oriunda de uma fé irracional nas reviravoltas da vida, mesmo que a verdade implacável se mostrasse nua em carne perante seus olhos, pois Rosália deixara bem claro que não o odiava, apenas não se importava com sua existência. Amâncio não haveria de perder para o ódio, irmão gêmeo do amor, mas para a indiferença, esta sim, implacável e inimiga mortal da vida. Tivesse ele a maturidade para discernir os limites do respeito ao próximo, não teria se aventurado em paixões inconciliáveis à sua suposta coerência e manter-se-ia fiel não à sua amada, mas aos princípios ensinados por seu pai e sua mão, sua mãe e seu colo. Disso jamais poderia reclamar, pois nunca se viu tanta dedicação, tanto apreço pelo desenvolvimento de um ser humano capaz de julgar com altivez e imparcialidade, contemplando prós e contras e advogando sempre em nome da verdade. Utopia nos move e nada são, senão a exacerbação dos sonhos de nossos pais, mas para Amâncio parecia ser tão lógico e decidido, que sua mente apenas se ocuparia em cumprir a sina, o que muito orgulhava seus pais. Os pais são os escultores de nossas almas e nós uma massa bruta de concreto, porém tão vulneráveis que não somos capazes de negociar nosso destino, e ao menor sinal de questionamento somos repreendidos como desrespeitosos e ao persistirmos na luta, somos teimosos e impossíveis. Só nos resta o choro, que se não funcionar pela compaixão, funcionará pelo incômodo ou embaraço público. Na boca de Amâncio enfiavam uma chupeta, que ao ver Rosália era escondida às pressas no bolso, porém ela também trazia consigo a sua, e de tão íntimos, trocavam os pacificadores de boca e amavam-se, trocando os sabores de saliva, sem que sequer houvesse um toque dos lábios. Sempre vizinhos, os quatro pais sonhavam com o dia da fusão das famílias, assim poderiam sempre passar as férias juntos, na casa da praia, iriam juntos ao supermercado, ao estádio e quiçá viveriam seus últimos dias no mesmo asilo, juntos até a morte. Por isso Amâncio era apenas dois meses mais novo do que Rosália. No dia primeiro de abril de mil novecentos e oitenta e quatro, Amâncio era trazido à luz, de forma natural, após os nove meses de muita expectativa e planos, dores e enjôos, que desde agosto infernizavam a vida de Rosalice. Para Amâncio, aquele agosto de mil novecentos e oitenta e três na casa da praia foi o início do fim.