domingo, 12 de setembro de 2010

Último Palanque


O cortejo deixa a capela rumo ao cemitério municipal que fica do outro lado da cidade de São José da Bela Vista. De todos os eventos que já ocorreram nesta cidade, nenhum mobilizou tanto os seus oito mil habitantes, que sempre prestam suas condolências, mesmo que não vá ali um parente próximo, que convenhamos, deve ser fato raro dado tal contingente populacional. À frente de todos vem o padre e sua bíblia. O irmão mais novo e o filho caçula seguram as alças da frente do caixão. Nas alças traseiras, vem o filho mais velho e irmão mais velho.

Internada no pequeno hospital de São José está Dona Etelvira, totalmente alheia aos acontecimentos.

Familiares distantes também vieram prestar a merecida última homenagem. Esperam pacientemente sua vez para auxiliarem na árdua tarefa de carregar o jazigo. Poderia ser tudo mais simples, pois a funerária Morte Feliz, a única da cidade, dispõe do serviço, mas a abundância de braços amigos dá à procissão um ar ainda mais tradicional.

Enquanto isso no seu leito de hospital, Dona Etelvira ainda não sabe de nada e seria prudente que não soubesse.

A cerimônia avança com a sombra das nuvens sobre as ruas da cidade. O branco da abóboda da imponente igreja matriz é realçado pelos raios de sol que rompem o céu esverdeado de uma tempestade que se anuncia, tornando a atmosfera ainda mais lúgubre. Os alto falantes da igreja anunciam que mais uma alma local fora chamada para junto do seu criador. Na calçada, o bêbado descambaleia e traz o chapéu amarrotado para junto do peito; os cães, que não se atrevem a latir, deitam e demonstram no semblante a piedade e parecem inclusive rezar com as patas dianteiras sobrepostas sob a mandíbula, as orelhas abaixadas e os rabos recolhidos; todo o comércio arria as portas; até os pássaros pousam e escondem a cabeça sob uma das asas. Os únicos sons que se ouvem são dos saltos dos sapatos que trepidam sobre o calçamento de paralelepípedo e o dobrar intermitente dos sinos. Não há um cidadão sequer que não esteja comprometido com o ritual.

A exceção é Dona Etelvira, sozinha lá no hospital, poupada da dura verdade, sem desconfiar de nada.

Ao se aproximarem do portão do cemitério, o canto lamentoso das carpideiras já pode ser ouvido e arranca lágrimas até dos funcionários da funerária, habituados ao ofício. O afilhado assume o lugar do filho mais novo e o cunhado o do filho mais velho. O Prefeito e primo José Lizzo, rende o afilhado e a outra alça é tomada pelo vizinho, marido da companheira de carteado. A troca é mais solene e precisa do que a da guarda da rainha da Inglaterra. Adentram o cemitério pela avenida principal, dobrando logo à esquerda na terceira quadra, onde se encontra o túmulo da família Lizzo. O caixão é aberto uma última vez e o padre conclama um último pai nosso, seguido de uma salva de palmas e cumprimentos congratulantes. Logo em seguida, as pessoas vão deixando o cemitério enxugando as lágrimas, prontas para retomar suas atividades. Os últimos remanescentes são os comovidos funcionários da funerária, que fecham o caixão vazio e o levam de volta à agência.

Um pouco mais tarde no hospital, diante do marido vereador e candidato à sucessão, filhos e alguns dos parentes que vieram para se despedir, Dona Etelvira mostrou por que de boba não tinha nada:

– Meus queridos, estou certa que de hoje eu não passo. Profetizou a enferma terminal. E de fato, não passou.

O que ela não sabia era que no dia seguinte o negócio seria para valer.


Um comentário:

  1. me fez lembrar Manuel Bandeira:

    "Quando o enterro passou
    Os homens que se achavam no café
    Tiraram o chapéu maquinalmente
    Saudavam o morto distraídos
    Estavam todos voltados para a vida
    Absortos na vida
    Confiantes na vida.

    Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
    Olhando o esquife longamente
    Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

    Que a vida é traição
    E saudava a matéria que passava
    Liberta para sempre da alma extinta"

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