sábado, 17 de julho de 2010

O mago sem diário

No rosto de Guilherme havia uma luminosidade que piscava incessantemente em multicores. O quarto estava escuro, mas o menino jamais conseguiria acender as luzes voluntariamente, pois estava em transe. Fora hipnotizado por um mago que paradoxalmente era conduzido pelo próprio garoto, por entre câmaras e florestas, desafiando os mais abomináveis seres, presentes apenas no imaginário distante dos mais vividos, mas tão reais para aquelas jovens retinas. Guilherme e o mago nada temiam, pois possuiam um bastão, que ao ser apontado na direção de seus inimigos, liberava uma carga energética de cor azulada e brilhante, de mais de duzentos mil volts. Ao invés do inimigo, lia-se mais vinte, mais cinquenta e dependendo da quantidade de energia despreendida do bastão, até mais cem. Depois de duras batalhas, o cansaço era inevitável. Recompunham-se os dois com maçãs e batatas fritas, milk sheiks e poções mágicas. O próximo adversário se aproximava e os dois sabiam que quanto antes a dupla atacasse, maior seria a surpresa, e consequentemente maiores as chances de vitória. Mas eis que a luz do quarto se acende. Surpreendido, Guilherme se distrai e numa patada anormal da besta metade urso, metade robô com focinho de cavalo, o mago é mortalmente ferido. Game over.


- Viu o que você fez pai? Você me fez perder. Logo agora que estava quase passando dessa fase. Três horas jogadas fora.

- Exatamente, meu filho. Essas três horas você jamais recuperará. E pelo que percebo, essa fase está longe de acabar.

Guilherme abaixou a cabeça e colocou o controle sobre o console de seu video game. O pedido de desculpas saiu por entre os lábios, quase inaudível, mas com indubtável sinceridade. O pai sentou-se na cama atrás do menino de onze anos e tratou logo de fazer com que o menino não se prolongasse muito em sua dor de arrependimento. Conversaram por alguns minutos. O suficiente para ser uma conversa muito mais esclarecedora do que todas as anteriores. Não pelas respostas que Guilherme dava às perguntas do pai, mas pela falta de continuidade de suas frases. Guilherme falava por monossílabos e quando titubeantemente se extendia, usava gírias desconhecidas para seu pai. Sem contar que por, pelo menos três vezes, assassinara de forma dolosa a própria língua. O fato talvez não mereceria tanta ênfase se Guilherme não fosse filho de um escritor. E o que é o escritor? A resposta mais curta é – aquele que escreve livros – isso até Guilherme poderia deduzir, tanto que ao ser indagado, assim o fez. Mas, o escritor tratou logo de corrigí-lo dizendo – o escritor escreve histórias e não livros – resposta prontamente rebatida com uma outra pergunta – mas, então o que é um livro?

O livro é um produto feito de páginas que contem textos. Os textos contém frases cunhadas com  esmero artesanal, que por seu turno contém palavras. As palavras são agrupadas de acordo com certas afinidades teóricas e necessidades de esclarecimento. São formadas por letras, que quando aproximadas expressam sons produzidos por articulações labiais, linguais, palatares e gutorais, combinadas com nuances de liberação de ar. As letras são feitas de curvas e ângulos desenhados pelas mãos, que são movidas pelo esqueleto, com auxílio dos músculos, que são movidos por impulsos elétricos originados no cérebro, que quando decifrados, são chamados de desejo, alegria, dor, consternação, surpresa, sapiência, arrogância, ódio e gana. À combinação desses estímulos, somados a muitos outros, damos o nome de conhecimento. O conhecimento é adquirido com a leitura de muitas histórias que constam em livros, fabricados por livreiros, que assim como os escritores, são formados pela união dos gametas de seu progenitores, popularmente conhecidos por pai e mãe. Estes são seres que tem, ou pelo menos deveriam ter, a incubência de exemplificar aos seus filhos, como adquirir tais conhecimentos para que possam se tornar cidadãos comprometidos com sua sociedade, tanto do ponto de vista ético, quanto moral.

Terminado o mini seminário, o pai olhava seu filho descrente de que algo havia sido aprendido. Sentiu-se até mesmo pedante, mas se algo deveria ser ensinado, não seria através da força. O garoto de cabeça baixa, mais uma vez sussurrou por entre os lábios:
– Você nunca jogou video game .

Sem complicar

Ela caminhava alegremente pelo espaço destinado às pessoas que não possuíam aparelhos de locomoção por força motora autônoma e artificial quando avistou aquele que num certo período indeterminado e não presente de vinte e quatro horas viria a ser o ser que a assumiria como a única com a qual ele teria uma relação de fidelidade para fins de sentimentos nobres e geração de seres menores apenas em tamanho e de características genéticas oriundas da combinação das suas e que levariam parte da composição de seus desígnios fonéticos.


Ele gostou dela e a desejou.

Ela não conseguia concatenar um processo sequer de sinapses bem sucedidas que implicassem em resultados satisfatórios do ponto de vista da ausência absoluta de qualquer razão que fosse capaz de resumir o volume inestimável de sensações corpóreas que se acumulavam naquelas três repetições de centena de segundos subseqüentes.

Ele tomou a iniciativa e foi falar com ela.

O processo de inalação e eliminação do elemento gasoso fundamental para a manutenção da vida ganhou sincronia desproporcional ao habitual nas vias condutoras do invólucro carnal daquela representante do gênero superior. Percebeu que já não era a principal condutora dos movimentos do sistema articulado.

Ele segurou a sua mão e curvou-se até tocar-lhe seus lábios na branca tez.

Para ela a propagação da energia que emanava do corpo celestial maior desapareceu e apenas a ausência poderia ser captada pelos seus dispositivos perceptivos.

Ele a segurou e com um copo de água trouxe-lhe de volta à consciência.

Ela dirigiu-lhe uma formação simples de palavras em tom interrogativo a respeito do sucedido.

Um mau súbito apenas.

Jamais se daria por plena a proposição do cavalheiro. Procurou auxílio profissional daqueles cujo ofício é reorganizar os pensamentos e domar os impulsos, mas nenhuma proposta de resolução de dúvidas foi bem aceita. Restava-lhe as palavras sugestivas daquele ser que mais estimamos por ter nos gerado, parido e alimentado até que ganhássemos auto suficiência e responsabilidade sobre nossos atos. Foi um hiato temporal que não contabilizou mais do que duas vezes a centena de milésimos:

- É o amor, minha criança.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Assim é covardia



Conversava um dia desses com um grande amigo meu sobre um dos assuntos "menos recorrentes" em nossos encontros: O futebol. Falávamos de grandes jogadores, grandes equipes, formações históricas, grandes decepções e alegrias, quando ele me indagou a respeito da minha escalação de uma seleção brasileira imbatível, mesmo que o futebol não nos permita fazer tais prognósticos, pois é dentre todos os esportes o mais imprevisível e o único que desafia a lógica de peito aberto. A pergunta de meu amigo foi provocativa, pois ele já trazia a sua escalação de uma seleção bem melhor do que a minha, sendo ele maior conhecedor da história do futebol do que eu.

- Só vale escalar os vivos, mesmo veterano ou ex-jogador. Só os vivos.

Depois que ele ditou as regras que claramente o beneficiariam, eu não tive escolha senão apelar covardemente para a escalação mais fantástica que este país já viu.

- Pois está bem. Escalarei meu time, mas não quero ser interrompido e você só poderá contestar quando eu terminar, fechado?

- Fechado.

Lá fui eu:



Goleiro: Pedro Luis e a parede seriam intransponíveis por razões óbvias. Camisa 1.

Lateral direito: Envergando a camisa dois estaria o filho do grande João, o Diogo Nogueira, com muita vitalidade e liberdade para subir ao ataque, pois seus cruzamentos sempre acabam lavando os adversários à loucura. Tal pai, tal filho.

Zagueiro central: No comando da zaga ninguém menos do que o grande Zeca Pagodinho, que manda na cozinha e não tem medo de cara feia. Se tiver que espanar, espana. Joga simples e sabe tudo. Camisa 3.

Quarto zagueiro: Ao lado de Zeca, a experiência é fundamental e o nome ideal para ocupar a vaga é de Martinho da Vila, com sua classe e requinte para sair jogando com segurança, tranqüilizando o resto da zaga. Camisa 4.

Lateral esquerdo: Conhecido como Pinduca, o homem da voz de Deus, Milton Nascimento é absoluto na posição, pois na lateral esquerda precisamos de alguém com raça e coração jovem, que chegue sempre ao fundo e surpreenda a zaga adversária, como um trem mineiro. Camisa 6.

Médio volante esquerdo: Toquinho é o nome. Seus lançamentos precisos de longa distância nos proporcionariam contra ataques mortais, sem contar a sua categoria e experiência para fazer o tempo correr. Camisa 8.

Médio volante direito: Com mais liberdade para atacar do que o companheiro da esquerda, João Bosco seria o formiguinha, o incansável, o falador e capitão do time por sua habilidade com diversas línguas (algumas desconhecidas do grande público), mas com a perspicácia e visão de jogo inigualável. Não seria o carregador de piano, pois é muito habilidoso para isso, mas ajudaria no combate no meio de campo. Camisa 5.

Meia-armador: Quem joga nesta posição precisa enxergar o campo inteiro. É o famoso maestro que joga de cabeça erguida com elegância e classe inigualável, de passes precisos e inversões de jogo, tem também grande poder de finalização. Precisa saber se movimentar sem a bola e quando o time está ganhando dita o ritmo. Só pode ser o Paulinho da Viola. Camisa 10.

Ponta direita: Nosso time é ofensivo e joga com pontas bem abertos, para evitar a retranca adversária. Na direita o azougue Djavan, criando jogadas tão complexas que atordoam seus marcadores e levam a galera ao delírio, relembrando os tempos do romantismo no futebol. Camisa 7.

Centroavante: Centroavante que se preza tem que ser tão goleador quanto polêmico. Vive de gols, mas quando faz belas jogadas se torna inquestionável. Quem se não Gilberto Gil para ser nossa esperança de goleadas? Com ele a festa é garantida. Camisa 9.

Ponta esquerda: Posição quase extinta no futebol moderno, mas que tem neste representante todos os pré-requisitos para que seja escolhido como o melhor do time. Inteligência, rapidez de raciocínio, habilidade ímpar, ginga e molejo, irreverência, malandragem, cara de pau, coragem e acima de tudo, amor ao futebol. Chico, com a camisa 13. É o único que terá total liberdade dentro de campo, sem a obrigação de marcar a saída de bola do adversário, mas ele marca assim mesmo só de birra.

No banco de suplentes estarão:

12 – Arlindo Cruz (goleiro)

15 – Jorge Aragão (zagueiro)

16 – Jorge Benjor (centroavante)

17 – Dudu Nobre (atacante)

171 – Dicró (malandro)

45 – Caetano Veloso (Curinga)

19 – Ney Matogrosso (lateral esquerdo)

É tanta responsabilidade comandar uma seleção dessas que escolhi dois técnicos com vasta experiência e sabedoria: Monarco da Portela e Nélson Sargento da Mangueira. Dizem que a sintonia entre eles é fina e quando se juntam não tem para ninguém.

- Pronto. Esta é a minha seleção.

Meu amigo ficou me olhando e não disse nada de imediato. Bebericou seu copo de cerveja; olhou para o último croquete que restou da porção, partiu-o ao meio e mastigou devagar, tentando ganhar tempo para pensar em uma saída. Levantou-se, tirou um dinheiro do bolso e jogou na mesa:

- Não dá. Assim fica difícil.

Foi embora tão inconsolável que nem sequer se despediu.


Fotos: Lisandra Arantes

Psicoliteratura



Adaílson sempre foi o melhor aluno de todas as escolas por onde passou. Era naturalmente bom em todas as matérias e nunca precisou dedicar muitas de suas horas aos estudos, como faziam os seus colegas de classe. Tinha predileção por português, pois aprendera a ler e escrever sozinho aos dois anos de idade. Aos seis já havia publicado seu primeiro livreto de contos e aos dez já ensaiava suas primeiras poesias. Gostava de Drummond e de Manuel Bandeira, mas seu preferido era o José de Alencar. Nos seus aniversários, os brinquedos que ganhava não recebiam a menor atenção. Porém quando um melhor observador o presenteava com um livro, a euforia era de causar espanto. Tornou-se seletivo com a leitura e já fazia vista grossa para misticismos e esoterismos baratos. Na sua adolescência não tinha muitos amigos, o que era uma preocupação constante de seus pais, que certamente se orgulhavam muito de ter um filho tão dedicado à literatura, mas também temiam que a falta de uma sociabilidade maior pudesse trazer-lhe problemas no futuro. Por diversas vezes tentaram convencer-lhe a sair e fazer amigos, até mesmo traziam os “amigos” à sua casa, mas como não recebiam quase que nenhuma atenção logo iam embora, o que deixava seu pai um tanto nervoso:


- Você não pode pensar que a vida está apenas nesses livros. Se não fizer amigos, não socializar, jamais terá uma família e acabará sozinho!

Adaílson respondia com certo grau de superioridade:

- Não me interessam as efemeridades, apenas a imortalidade.

Adaílson foi se tornando cada vez mais recluso e praticamente suas únicas companhias eram seus livros e sua velha máquina de escrever. Já fazia todas as refeições em seu quarto e de lá poucas vezes saiu, duas delas para ir aos enterros do pai e da mãe. A idéia de imortalidade foi se transformando em uma obsessão. Falava em se candidatar a membro imortal da Academia Brasileira de Letras, mas após algumas nomeações duvidosas, desenganou-se e passou a se dedicar ao que chamava de imortalidade no sentido real da palavra. Queria que seu corpo fosse se transformando aos poucos em prosas, versos, poemas e contos. Queria transcender a matéria e para isso seu corpo era um estorvo. Estava absorto e catatônico para o mundo enquanto que para as letras cada vez mais vivo. Quanto mais escrevia, mais próximo à imortalidade acreditava chegar. Aos trinta e tres anos de idade, já fraco e debilitado, começou a escrever seu último poema em vida:

Joga a rede o pescador

vai buscar buscador

Traz a vida que sacia

pro susteio da famia

Lamenta a falta da fartura

enxuga logo as amargura

E antes que pudesse chegar ao fim do poema, seus fracos pulmões, tomados pelos fungos causados pela terrível umidade do seu quarto, sucumbem e o sufocam.

O jovem Josias, apanhado por uma súbita volúpia literária, debruça-se sobre a carteira em sua sala de aula, durante uma maçante aula sobre a história do descobrimento do Brasil, e segurando a cabeça com uma das mãos abre seu caderno na última folha e começa a rabiscar as linhas curtas do seguinte poema:

Joga a rede o pescador

vai buscar buscador

Traz a vida que sacia

pro susteio da famia

Puxa firme para a areia

hoje tem barriga cheia

Sofre o peixe em sua dor

pescador pesca a dor.

Os olhos de Josias Damaceno se reabriram ao pequeno mundo à sua volta. Com a mão esquerda ainda quase adormecida, fechou seu caderno. A esta altura já falavam das capitanias hereditárias.