quarta-feira, 24 de outubro de 2012

As Bodas de Ouro de Jair e Lenir




      Um furo na mangueira de gás praticamente imperceptível, não porém, para a cabeça desgastada de um velho prego na parede, onde um armário de madeira prensada sustentava-se desde a data de sua instalação por um dos padrinhos de casamento de Jair e Lenir. 
         O interruptor já amarelado e já viúvo do espelho que o adornava ao passo que escondia os fios desencapados que encontravam suas terminações de cobre entrelaçadas aos furos dos disjuntores de ferro pintados de preto, ali colocados quando da construção da casa, concluída parcialmente, porém em condições mínimas para ser habitada três meses antes do casamento de Jair e Lenir. 
    Os óculos já embaçados e remendados por esparadrapos e fios de arame que repousavam sobre a mesa de cabeceira, esquecidos pela amnésia cada vez mais constante devido à degeneração neuronal, causada pela avançada idade não refletida no porta retrato que ainda resiste à gravidade de forma inexplicável ao lado dos óculos que magnificam a imagem contida no papel fotográfico contendo a imagem do brinde nupcial de Jair e Lenir.
        A faísca que provocou a chama que alastrou-se primeiro pelo chão, atingindo os panos de prato colocados na alça do fogão para que secassem após a lavagem da louça do jantar de comemoração das bodas de ouro testemunhada por padrinhos, irmãos e irmãs, filhos e filhas, netos e bisnetos, cão de guarda, amigos e amigas, vizinhos e parceiros de carteado, que sem exceção já se encontravam em seus respectivos domicílios na hora do incidente referido que terminou por queimar o restante da casa citada, com os novos armários que substituíram os antigos mencionados e que não pouparam nem os óculos remendados já descritos, nem o porta-retratos à prova de gravidade, foi causada pelo acionamento do interruptor amarelado, dependurado na parede de azulejos antiquados por um invasor que buscava riquezas reluzentes, recebidas em ocasiões especiais com a já registrada comemoração e jamais deixadas para trás quando já longe, em viagem de lua-de-mel pelo interior de Minas adornando os pescoços, dedos, pulsos e orelhas de Jair e Lenir.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A Loja de Espelhos




           Amanda finalmente conseguira um emprego de vendedora em uma loja de decoração após meses de incessante procura e tentativas frustradas, que quase fizeram-na crer que a maternidade seria sua sina, ainda que não houvesse conhecido quaisquer candidatos à altura para o cargo de coautor.
     Não era culpa da escassez de ofertas de trabalho, tampouco de pretendentes apaixonados. A razão da demora era a abundância de critérios e regras, ou mais precisamente do critério de suas regras.
           Aos incautos poderia causar espanto o fato de que o emprego finalmente aceito, e este é o termo mais acurado para o caso, não figura entre as dez carreiras mais desejadas pelos filhos da classe média pseudoeuropéia brasileira.
       A vaga foi escolhida a dedo por Amanda e o setor não poderia ser outro senão o de espelhos decorativos.
      É preciso saber que Amanda era uma jovem de vinte e cinco anos, formada em sociologia, com mestrado em ciências sociais aplicadas, que perdeu a visão aos dois anos de idade devido a um glaucoma.
        Sua primeira semana, como ela própria já esperava, não foi promissora do ponto de vista comercial. Nenhum espelho fora vendido e os poucos clientes com quem teve a chance de negociar deram desculpas óbvias como “estou só olhando”, o que não deixa também de ser redundante no referido setor.
          As semanas seguintes não foram tão diferentes da primeira, a ponto de sua posição ficar ameaçada sob a justificativa de não cumprimento de metas. Embora algumas poucas unidades terem sido vendidas, o descontentamento do gerente geral da loja era nítido aos olhos de todos e aos ouvidos de Amanda, que não precisava de palavras, apenas de tons de voz para desnudar intenções alheias.
         Não se deixava pressionar, mas sabia que seu tempo, pelo menos ali, estava contado.
        Adotou um estilo mais agressivo de abordagem, convencida de que a meta do setor era não apenas irreal, como banal. Precisava de uma cliente, e não bastava ser qualquer uma. Deveria ser a cliente ideal, feito sob sua encomenda peculiar.
     Quando ouviu aquela voz suave que indagava sobre a responsabilidade pelo setor, não teve dúvidas de que Fernanda era a mais aguardada de todas as clientes.
        Após Fernanda descrever em linhas gerais o que procurava, Amanda a conduziu ao seu espelho favorito. Tinha linhas sóbrias, com moldura negra de madeira maciça, muito pesado e imponente.
- O que você acha desse? Perguntou Amanda.
- Sem dúvida é lindo. É forte e robusto. Você se importaria se eu te dissesse que você fica linda nele?
         Amanda fora completamente surpreendida pela franqueza de Fernanda.
- Como... como assim?
      Fernanda não se esquivou. Não poderia fingir que não percebera a peculiaridade de Amanda. Também sabia que enxergar não é sinônimo de ver, porém o reflexo no espelho não estava ao alcance dos sentidos de Amanda, a não ser por uma narrativa.
- Você nesse espelho fica como uma senhora altiva, que impõe respeito, cuja dignidade é inabalável. Não sei se é a moldura ou a altura do espelho.
- Lembrei-me de minha mãe com seus seios fartos e pernas firmes e torneadas que realçam essas características que você mencionou.
- Por esta descrição posso supor que você se parece com ela.
- Acho que sim. Talvez você gostaria de ver algo mais despojado, menos tradicional. Sugeriu uma desconcertada Amanda.
     Fernanda aceitou a sugestão e caminharam cerca de cinco passos à esquerda do primeiro espelho. Estavam de frente à uma moldura de flores variadas e coloridas, feitas de ferro, pintadas à mão.
- Então, o que acha desse?
- Suave, romântico e até bucólico. Refletida nele, você fica tão graciosa como uma criança correndo por campos verdes, descalça, de vestido ao vento, soltando gargalhadas descompromissadas e sinceras.
       Amanda sentiu-se nua diante daquela narrativa, mas não escondia o largo sorriso que só as almas puras tem o privilégio de ostentar.
- Minha irmã.
- Como disse? Indagou Fernanda, ao acordar de um transe momentâneo.
- Assim era minha irmã, Rita. Ajudou minha mãe a me criar. Quando fui para a faculdade pagou meus estudos, trabalhando em dois empregos, sem jamais demonstrar nenhum cansaço. Sempre sorrindo, de bem com a vida e feliz por poder me ajudar. Nunca se casou. Para ela, o casamento seria uma forma séria de acabar com sua alegria de viver. E para ela, viver era brincar. Tinha uma pele tão cheirosa que  todos os perfumes se calavam  por onde ela passasse.
     Amanda descrevia sua querida irmã com tanta fluência que ela quase se materializava naquele espelho. Entretanto, ao se calar e suspirar de saudades, não mais ouvia a respiração de Fernanda, levando-a por um instante supor que sua tão esperada cliente se cansara de toda aquela conversa e fora embora. Sentimento este prontamente desautorizado pela tranquila voz de Fernanda.
- Se dizes que o sorriso dela era lindo eu acredito, só não posso concordar que seja mais do que o teu. E é o seu cheiro que dá vida às flores do espelho.
   Por mais que Amanda tentasse disfarçar sua felicidade sob uma postura formal e profissional, seus lábios grossos a venciam e se esticavam expondo aquela sequência irrepreensível de dentes brancos como carne de coco.
     Viram outros vários espelhos e molduras. Cada espelho, uma personagem da vida de Amanda. Lá estavam também, seu pai, tios e tias, amigas de infância, primos e primas.    Fernanda enfim, depois de muito procurar, fez uma escolha. Quis Amanda, de carne e osso.
      Amanda defendeu sua tese sobre múltiplas identidades e após a conclusão de seu doutorado tiveram duas filhas. Angela, gerada no útero de Fernanda, é suave e graciosa como Amanda, mas a sua audácia não deixa dúvidas da influência de Fernanda. Já Dandara, não é necessariamente sutil, assim como Fernanda também não o é. Mas os ancestrais de Amanda estão presentes na alma e pele negras de Dandara, no seu sorriso desconcertante, no perfume inebriante e na intelectualidade ímpar.
      Amanda nunca mais procurou emprego. Divide seu tempo entre as filhas, suas aulas, pesquisas e a loja de espelhos que abriu com Fernanda, a menina para muito além dos seus olhos.