terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Verbociclo





O verbo que habita a sua boca não é meu, não é seu, não tem dono.

Acaricia a língua, repercute nos dentes e ecoa nos ouvidos.

Seduz, convence, responde, pergunta, mas não é seu.

Você disse que sabe, mas não sabe que ao dizer disse a voz de um bufão, de um rei, do senhor, do barão.

Repete, confirma, ilude, confunde, gagueja, não pensa.

Pensa que força é permissão para violentar.

É violentado, defenestrado, destituído, anulado de suas próprias bandeiras.

Traduz, produz, conduz ao caos.

Procura, responde, erra, insiste, rejeita, reprova e repete tudo outra vez e outra e outra.

Conclui, resolve, decide, revela, ignora, suicida.

O verbo migra para outra boca e segue sua sanha de poder ser poder.

Não para, não cessa, não finda. Circula, engana, trai, assassina.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Cobra Criada




Sapatos pretos ingleses sobre a mesa de seu gabinete.
Televisão ligada na emissora parceira, plantão de notícias.
Multidão dirigindo-se ao palácio, greve geral, apitos, faixas e camisas.
Lembra-se da Tia Verônica. Ela pegou sua mão e o levou à mesa onde outros três colegas já se ocupavam com giz de cêra e lixa. Limpou as lágrimas e pôs-se a desenhar.
Pensou em Tia Rita e as intermináveis aulas de tabuada. Responda rápido ou sairá por último. Essa era a regra. Veja só, até Mariana saiu antes de ti, menino.
De Dona Carmem herdou o dogma, aqui é estudo, família é educação.
Educação de família que outrora ocupava o mesmo banco, na mesma sala com a mesma Dona Carmem. De geração em geração, perpetua-se a lição.
Como esquecer de Tia Simone, o primeiro fetiche. A primeira mulher, mesmo que à distância, mesmo que em pensamento, mesmo que solitariamente. Era sua, de mais ninguém.
Odiava História, mas amava Teresa. Não havia Química que o fizesse odiar Odair. Muito menos seriam as leis da Física capazes de interferir em sua amizade extra-acadêmica com Euclides.
O melhor de todos os esportistas de sua geração, algoz de Nilton, em qualquer modalidade proposta.
Deveras condecorado, saudado, exemplificado, contado e cantado.
O número um. O nota dez. O nata da nata.
O volume da televisão encoberto pelos apitos, gritos, cantos ao vivo do lado de fora.
Greve, aumento, dignidade, respeito, mas nada de poder, nada de autonomia, nada de tudo que lhes pertença ou caiba de fato.
 Sapatos pretos ingleses sobre a mesa, telefone na mão, polícia na rua, porrada na multidão, sorriso no rosto, olho no diploma na parede.
Sorriso no rosto.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Des...




A manchete do jornal era simples: Populismo custa caro ao contribuinte.

Verônica por cerca de cinco minutos concentrava-se em cada letra, soprando os sons inaudíveis aos transeuntes, como se rezasse um terço.

Chegou a tirar os óculos, acreditando momentaneamente no equívoco do vendedor da ótica, uma loja à qual refiro-me, não ao editor.

O dono da banca, refiro-me ao jornaleiro, não novamente ao editor ou jornalista, apenas observava a cena com impaciente curiosidade, respeitando, porém, o direito do leitor ao menos a uma mera manchete.

Finda a leitura, Verônica seguiu seu caminho ao trabalho em uma clínica de oftalmologistas no Leblon, onde cumpria sua função de auxiliar de serviços gerais. Varria, espanava, lustrava, lavava, passava café, servia café com açúcar ou adoçante, biscoitinhos light, de aveia e nozes ou então somente água, obrigada.

Na clínica havia jornais e revistas com manchetes parecidas com a vista por e não de Verônica, algumas inclusive com as mesmas palavras colocadas em posições diferentes, ou com adição de algo como sobrecarrega, população, média, gasto, pobres, com outras tais como chega, abuso, bolso, cidadão, bem, era assim.

Verônica não comentava nada que não lhe fosse perguntado ou requisitado. Restringia-se a obrigado, pois não, aqui está, não há de quê, sim senhora, não senhor e vice-versa. Punha tais dizeres em exímia prática de contexto, conforme haviam sido ensinados.

Carregou nos lábios as manchetes do jornal visto mais cedo ainda em sua banca e dos outros vistos no trabalho, além de uma palavrinha escutada aqui e acolá entre um por gentileza e um muito obrigada, repetindo incessantemente em tom de cantilena as palavras populismo, custa, caro, ao, contribuinte, ricos, pagam, pobres, injusto, abuso, preguiça, safado, malandro, vagabundo, bom, mesmo, é, maiami, imposto, absurdo, onde, é, que, isso, vai, parar.

Ao chegar em casa, beija a testa da filha que com a filha no colo e o filho na rua, beija o ar em resposta. Chama o neto. Ele vem obedecer. Leva bronca. Onde já se viu jogar bola na rua com uniforme de escola. Amanhã tem aula. Ele está aprendendo a ler. As manchetes tratarão de fazerem-no desler o que ele ainda não compreende, mas vai descompreender, se não souber desdenhar, se não morrer por desobedecer.

sábado, 27 de julho de 2013

O Mundo Visto a Partir do Falo






Não há escapatória
Não há nada além de uma arbitrariedade natural
Não há nada que a língua não explique e que os números não provem
Não há questionamentos possíveis ao quilo, ao grama, ao metro, ao litro, aos volts
E se mesmo o deus ousasse questioná-los, de si mesmo não escaparia
Não há complicações além do alcance das retinas
Não há nudez que seja desmentida por desejos não pré-estabelecidos
Não há e nunca haverá possibilidade de equilíbrio que não penda ao mais forte
Não há mais forte sem o mais fraco
Não haveria fracos se não houvesse a preguiça
Não há espaço para os preguiçosos, nem dignidade ou moral que possa resgatá-los
Não há outra alternativa senão esmolar e se livrar da culpa
Não há forte sem Falo
Não há Falo sem fala
O que fala o Falo é que não há fala que fale de um mundo onde o Falo não fale mais alto sua pretensão de falar a verdade.

sábado, 20 de abril de 2013

Diálogos Possíveis








Clarice caminhava na direção da mesa do bar da esquina onde ele estava sentado. Ele não teria muito tempo para pensar no que poderia ser dito, no máximo vinte segundos, no máximo três tentativas.
Na primeira delas, ela chegaria elegantemente austera. Seria uma demonstração de equilíbrio aparente, pois em seu interior já ultrapassara o ponto de ebulição. Não fosse sua pele clara e macia estaria exalando o ódio. Perguntaria da vida dele, o que tem feito, por onde tem andado, entre outras amenidades para driblar a fúria. Ele responderia tranquilamente, porém tomaria a precaução de não muito se alongar. Muito trabalho, compromissos, pouco tempo e quase nenhum sono. Ela o encurralaria na parede, usaria todos os seus argumentos indiscutíveis e o deixaria sem a menor chance de defesa. Ele não a contestaria. Apenas se desculparia e faria sua vigésima promessa de tornar-se um homem melhor. Clarice concordaria pela vigésima vez.  
Percebendo, entretanto, que Clarice trazia um sorriso discreto de pouca tensão labial, concluiu que não poderia haver motivo de revolta, tampouco teria ele razões para se preocupar. Esta foi a segunda suposição.
Ela o cumprimentaria com um beijo breve, mas não desprovido de amor. Perguntaria se ele a esperava há muito tempo e se já havia pedido algo para comer. Ele diria não estar com fome, só com muitas saudades. E concluiria declarando seu amor de maneira inesperada para uma ocasião, a princípio, corriqueira e banal, tornando-a subitamente romântica. Clarice, surpreendida, pediria apenas uma bebida e depois iriam juntos para casa cuidar da vida, da maneira que melhor os conviesse.
Há cinco segundos de distância ocorreu-lhe a terceira hipótese. Clarice nem sentara-se à mesa. Não seria de seu costume fazer qualquer tipo de cena que constrangesse a quem quer que fosse, nem ao seu pior inimigo, cujo o ocupante daquela cadeira era o principal candidato a ocupante do cargo. Apenas colocaria sobre a mesa a aliança que outrora ocupava um de seus dedos na mão direita. Seria breve em recomendar-lhe distância, altiva em sugerir-lhe o esquecimento e digna ao dar-lhe a chance de algo dizer, mesmo sabendo que suas palavras egoístas e efêmeras não seriam capazes de alterar em nenhum milímetro o curso dos fatos.  
Clarice por ele passou, sem ao menos perceber-lhe a existência, virou a esquina e sumiu para sempre. Era Clarice, mas poderia ser Isabela, Cristina, Marina, Luísa, Denise, ou qualquer outra criação de sua imaginação fértil, carente de presença física e  inundada de solidão. Restava-lhe o copo, a garrafa, seus músculos tatuados, o time de coração e seu cão que ainda teimava em acompanhá-lo. Por enquanto estava a salvo. Faltava-lhe apenas o que para ele era um mero detalhe.  

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Qualé Malandro?

Toca o sino, abre os olhos, bocejos, preguiça
No banho faz a barba se lava e se atiça
Da ajuda divina abusa, pois cedo madruga
Na padaria com o de sempre servido por ele
O portuga, o portuga
Café com pão e Arcos da Lapa
Jornaleiro dá bom dia
Meu chapa, meu chapa
Tem jornal, tem revista, uma fézinha sem lei
 Boa sorte patrão, que bobo não é
Olha lá, Jacaré
Eu falei, eu falei
Pintou um trocado, olha aí o perigo
Guarda um pouco, faz alegria do amigo
O mendigo, o mendigo
Hojé tem rango, hoje tem cana
Toma até banho,  
tá bacana, tá bacana
Tem frango e farofa
Da Dona Ana, da Dona Ana
Criada na roça, tempero de mão
Sai arroz, sai angú
E o feijão e o feijão
Cozinha pra fora, entrega marmita
serve o jornaleiro, o portuga
e Dona Carmita e Dona Carmita
mãe dedicada, gente da gente
o filho é o orgulho, o pai indigente
nunca fez falta, longe dos olhos
Não se sente, não se sente
Gilberto é feliz do pai não saber
Faz show, canta e dança
Vai crescer, vai crescer
Vai ficar rico, vai ser da fama
Compra casa na praia
Em Araruama em Araruama
Não casa, não pode
É diferente, nem dinheiro acode
Faz festa de arromba
Sacode, sacode
Na rua tropeça no mendigo
Um fede cachaça o outro cerveja
 arromba a porta dos fundos
da igreja, da igreja
invade a sacristia, dos tempos de menino
lá vai o coroinha do padre Celsino
Toca o sino, toca o sino.