quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Faroleiro




De olhos abertos seguem seus caminhos, pelo passeio à esquerda de quem vai e à direita de quem vem na rua de mão única.


De olhos fechados abre-se uma clareira na floresta e os seres encantados se aproximam para a festa.

De olhos abertos dou um passo de cada vez, firme como deve ser a certeza de onde se quer chegar.

De olhos fechados a valsa suave de acordes simples e inocentes toca os corações dos puros, que se põem a bailar. Dançam em pares, suas roupas são leves e estão descalços. Não há espinhos na relva.

De olhos abertos o sol está quente, mas o coração bate na temperatura certa. Vê a janela da moça formosa? É pra ti que se abre. Mas não demora muito e a mãe perversa a fecha sem pudor. Cuidado com o buraco.

De olhos fechados há regozijo. Há banquete de frutas e vinho. Há bonança aos que querem o bem e somente o bem. Por isso dançam. Por isso bebem. Por isso comem.

De olhos abertos o sinal está vermelho. Pode atravessar. Atravesse na faixa e não pise na linha. Siga à esquerda.

De olhos fechados a lua ilumina a festa na companhia de muitas, quase todas as estrelas. Os seres têm olhos atrofiados, nariz e boca grandes. Não há escuridão que os detenha. Não há luz que os cegue.

De olhos abertos ninguém se olha, ninguém se vê. A lei é do medo. Se há sol há medo. Maldito seja quem ordenou que se fizesse a luz.

De olhos fechados a música parou. A floresta pegou fogo e os seres encantados tornaram-se o banquete.

De olhos abertos fica cada vez mais quente e oxalá! esquente mais.

Da rua à floresta leva-se algo em torno de cento e cinqüenta milésimos de segundos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Cosmopolita


Não é da verdade que devo falar, é do fingimento.

Tirando o que se pensa ser real, o resto é falso.

Finja que respeita os seus pais e irmãos.

Dê-lhes carinho de mentira para obter carinho em troca.

Finja ter laços familiares com pessoas que você, supostamente, é incumbido de amar.

Guarde dinheiro. Sonhe com a Disneylandia. Ao encontrar aquele rato de mentira, em frente ao castelo de ilusão, próximo aos estúdios dos sonhos finja-se caucasiano e abastado. Não seja latino, seja incompreensível. Compre o chapéu de orelhas e finja-se de rato. Mostre aos amigos que você pode ser rato e eles não. Financie o sonho das crianças. Estadunidenses. Democráticos como rambos, soldados universais, provedores da paz e da liberdade.

Finja que és capaz de aprender, na escola, na rua, com os mais velhos. Finja que não copias.

Disfarce a ignorância fingindo saber o que ninguém sabe. Finja que todos são tolos. Assista ao jornal nacional, às novelas e finja que não é com você. É só provocação.

Faça de conta que gosta de pegar metrô lotado e que vive experiências sociológicas edificantes. Faça-se plural. Vista calça xadrez, tênis descolado, camiseta surrada e jaqueta de brechó. Finja que não liga, por que é assim e pronto e que se dane quem não gostou.

Finja que o sucesso é uma questão de tempo. Que trabalha. Finja ter escrúpulos, honra e dignidade.

Finja viver em outra sociedade. Enólogo, chef, bom pai e marido. Finja que joga tênis.

Troque o seu passaporte. Renegue seu nariz chapado, lábios carnudos, bunda arrebitada. Disfarce o samba.

De quatro em quatro anos, sem a menor intimidade e vergonha pendure a bandeira daquele país conveniente na janela do seu quatro por quatro assassino da camada de ozônio e finja que chora de emoção na hora do gol.

Finja que amadureceu e com isso ganharás status de sábio e diploma de inútil. Angarie compaixão com frases espirituosas, sem o menor pudor, que ainda assim serás perdoado.

No momento de abdicar da companhia dos entes queridos dissimulados, finja não ter medo.

De nada vai adiantar fingir que vives.