segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Ora Vejam Eustáquio



Esta é a história de um homem que por aqui esteve e se foi sem jamais ter sido.

Eustáquio era seu nome de batismo. Nunca teve apelidos, pois não havia amigos para afagar-lhe, ou inimigos dispostos a traumatizá-lo.
Nos tempos de escola, o jovem tímido e recolhido ao exílio dos romances clássicos desprezados pelos outros meninos que preferiam a bola, sequer era alvo de maledicências desconfiadas devido ao seu desprezo pelo violento esporte bretão.
O menino por diversas vezes esquecido pela mãe, que deveria buscá-lo na saída da escola às cinco, não parecia se abalar com os frequentes lapsos maternos e aproveitava para se meter entre as prateleiras empoeiradas da pequena, mas bem servida biblioteca.
Sua performance acadêmica digna de grandes louvores não era invejada pelos demais. Tampouco procuravam-no para ajudas desesperadas no fim de ano para as provas finais.
Eustáquio formou-se em administração de empresas e logo fez concurso público, sendo um dos primeiros colocados e prontamente convocado a assumir o seu posto em um banco do governo, de onde só viria a sair na ocasião de sua aposentadoria, quando a função que ocupava foi extinta por obsolecência. Em todos os longos anos como servidor público não foi capaz de fazer nenhuma amizade, nem mesmo para uma cervejinha depois do expediente, haja visto que seu turno era noturno, compensando cheques, fazendo lançamentos e débitos, um a um, manualmente com uma inseparável caneta descartável que reutilizava trocando-lhe o refil. Tarefa esta, diga-se de passagem, absolutamente metódica e compulsiva, pois comprava outras canetas descartáveis da mesma marca e modelo, retirava-lhes a carga, substituía pela terminada e desfazia-se do resto.
Viveu com os pais até que morressem e estabeleceu uma viuvez preventiva, repleta de ritos e manias que certamente inviabilizariam qualquer relação conjugal. Sua companhia era Eurico, herança dos pais que acharam o pequeno vira-latas em uma excursão para pessoas da terceira idade para Águas de Lindoia, na qual Eustáquio fez-se presente na ida, porém seu retorno somente se deu dois dias após o dos pais, pois seu nome não constava na lista de passageiros.
Eurico, criado com todas as regalias de filho caçula não abanava-lhe o rabo quando chegava do trabalho, nem mesmo deitava aos seus pés. Até latia como se fosse para um estranho. Era arredio aos carinhos de Eustáquio, sendo que por vezes até rosnava, chegando a morder a mesma mão que o alimentava invariavelmente duas vezes por dia, às dez da manhã e quatro da tarde, quando enfim poderia desfrutar de sua privacidade, pois a esta hora o suposto dono saía para trabalhar.
As folgas no banco eram sempre às sextas e sábados, quando aproveitava para praticar seu passatempo favorito, o xadrez. Jogava no clube de xadrez perto de sua casa e sempre contra o mesmo adversário, Eurípedes, que apenas trocava um boa noite automático com Eustáquio, disparava o relógio e os dois punham-se a fazer movimentos rápidos, como se já tivessem ensaiado todo o roteiro do jogo e estivessem ali apenas a cumprir a mera formalidade de mover as peças. Eurípedes sempre vencia e celebrava seus triunfos com uma risada contida, em boca fechada, com o sarcasmo dos que tripudiam sobre o cadáver do inimigo. Abanava a cabeça em agradecimento, desejava boa noite ao derrotado, levantava-se e desaparecia. Até que um dia, Eurípedes não compareceu ao sagrado compromisso. Era de causar estranheza que abrisse mão de mais um triunfo certo, mas as semanas seguintes não foram diferentes. Aquele que havia chegado mais perto do que se poderia dizer amigo de Eustáquio, que trocara mais palavras e acenos com ele do que qualquer outra pessoa, abdicava do posto de seu único e maior algoz. Teria Eurípedes se cansado das vitórias garantidas e procurado um adversário mais digno? Teria ele mudado de clube, cidade ou país? Teria se mudado para a Europa? Morrido?
Por semanas, Eustáquio esperou pelo implacável companheiro na mesma mesa, no mesmo horário. Começou a considerar a hipótese de alguem se comover com sua obstinada e disciplinada teimosia e vir dizer-lhe o paradeiro de Eurípedes, ou até mesmo oferecer-se para substituir o titular, mas nada aconteceu.  Tentou jogar sozinho, mas as peças brancas com as quais sempre jogava eram covardemente derrotadas pelas pretas. Sentindo-se humilhado, auto-flajelado, abandonou o xadrez.
Sua rotina continuava intocável e cumprida à risca, com exceção da substituição do hábito do xadrez por cartas de amor. Escrevia para remetente nenhum. Criava diversos personagens. Corajosos, apaixonados e apaixonantes, comprometidos com a única tarefa de fazer feliz a pessoa amada, mesmo que lhes custasse a vida. Curiosamente, todos os personagens chamavam-se Eusébio. Ora príncipe, ora atleta, às vezes multimilionário do petróleo, era capaz de amar com a intensidade de trombas d´água que se tornavam gotas de orvalho na imensidão do oceano, entre outros clichês patéticos. Eustáquio dava vida a Eusébios mil que suplicavam-lhe liberdade para ganhar o mundo, mas o criador tinha planos menos ambiciosos para as criaturas. Percebeu após décadas que tinha uma vizinha, Eulália, que era solteira e tinha uma cadelinha chamada Eunice.
Já se aproximava de sua aposentadoria, mas todos os dias ao sair para o trabalho colocava uma de suas cartas na caixa de correspondências de Eulália. Mesmo depois de aposentado, não abandonou o ritual de sair de casa sempre à mesma hora só para que se obrigasse a deixar lá na caixa de Eulália mais uma das tantas centenas de histórias, flertes e súplicas de amor de inúmeros Eusébios.
Um dia, ao sair para cumprir com seus rituais, foi acometido de um lapso momentâneo e incomum, deixando o portão aberto. Eunice, exalava o cio, Eurico respondeu ao chamado. Fugiu. Justamente no dia em que Eulália, cansada da perseguição intermitente de Eusébio, preparava sua mudança para outro lugar, bem distante dalí. Ao ver Eunice e Eurico juntos, comoveu-se e decidiu levar os dois consigo. Partiu antes que Eustáquio retornasse, deixando sacos e mais sacos de entulho e rigorosamente todas as cartas de Eusébio em sacos pretos.
Ao chegar em casa, Eustáquio viu a placa que anunciava a disponibilidade de aluguel no muro de sua vizinha. Inconformado com a ausência de Eurípedes, agora também deixavam-no Eulália, Eunice e Eurico. E para piorar os fatos, havia o retorno insuportável de todos os seus Eusébios, descobertos após um arroubo de curiosidade que o levou a abrir cada um dos sacos empilhados na calçada. Descobriu que apenas três envelopes haviam sido abertos, os primeiros que havia deixado para Eulália.Todos os outros encontravam-se tão lacrados como no dia em que foram escritos e entregues.
Entrou em casa, pegou a caneta descartável, recarregada de estimação e pôs-se a redigir o seu testamento, em que deixava tudo o que possuía, que não era assim tão modesto, para Eurico, numa vã esperança de que o animal sentiria sua falta e acharia o caminho de volta para casa.
Foi ao supermercado, pegou uma garrafa de vodka e foi andando em direção ao caixa. Parou. Pensou e calculou que uma garrafa não seria suficiente para compensar por todos os porres que nunca havia tomado em toda sua existência. Voltou. Apanhou mais uma garrafa e novamente seguiu em direção ao caixa. Entrou na fila. Na sua vez o caixa fechou. Mudou de fila. O cliente da frente deixou cair um pacote de biscoitos. Eustáquio prontamente abaixou-se para pega-lo. Ao levantar-se, percebeu que havia perdido duas posições na fila para dois jovens que ignoraram por completo sua reclamação. Tentou ao menos entregar o pacote ao cliente que o deixara cair. Este fez que não ouviu. Olhou à sua volta e todos os caixas tinham filas imensas. Decidiu que não pagaria e foi andando em direção à saída. Havia um guarda em posição de vigília ao lado da porta do estabelecimento. Temeu, mas seguiu em frente, passando pelo guarda e já esperando que o alarme soasse e todos viessem a perseguí-lo pelas ruas. Gritariam pega ladrão, haveria tiroteio, seria baleado, socorrido de helicóptero, mas morreria como o anti-herói, carregado nos braços do povo em seu funeral. O alarme não soou. Ninguem o perseguiu. Olhou para trás para certificar-se que era caçado e não viu mais do que senhoras carregando suas sacolas de compras e crianças a deliciarem-se com seus sacos de balas.
Ao chegar à sua rua já havia bebido uma garrafa e meia. Parou em frente à antiga casa de Eulália e pronunciou no idioma Embriaguêz:
– Eulália minha vida. Eulália minhas cartas. Eulália...Eustáquio...Eusébio dos infernos!
Numa última e única golada terminou com a segunda garrafa e caiu sobre os sacos pretos que continham suas cartas. Misturava-se a eles com seu terno preto, seu uniforme desde sempre. Alí ficou por toda a madrugada. Pela manhã, Eurico que encontrara o caminho de volta, cheirou Eustáquio, levantou a pata traseira e mijou em sua cabeça. Eurico entrou em casa. Eustáquio abriu um dos olhos e retornou ao coma.
O caminhão de lixo parou em frente à antiga casa de Eulália. Os coletores pegavam os sacos e os arremessavam na caçamba. Fizeram o mesmo com Eustáquio. Na caçamba ele era chacoalhado, misturado, difundido e levado para o aterro, vulgo lixão.
Lá foi depositado, empilhado, coberto por sacos fétidos, alimentos podres, fraldas imundas, entre outras coisas inomináveis, inclusive as cartas de amor de Eusébio. Descoberto pelos recicladores, teve suas roupas arrancadas e disputadas a tapas, porém o resto ficou lá, completamente descoberto, indubtavelmente nú. Os urubús, que compartilhavam com os ratos os restos mais podres que poderiam haver naquele aglomerado, pousavam sobre os membros de Eustáquio e bicavam apenas o que encontravam de podre em volta dele. Depois de limparem o entorno de Eustáquio, voaram e foram atrás de um novo despejo que acabara de chegar. Porém um velho urubú-rei, manco, de asa quebrada e cego chegou atrasado até Eustáquio. Seu olfato já cansado não permitia-lhe mais distinguir entre fresco e podre. Bicou a bocheha de Eustáquio, que assutou-se, mas não tinha força nenhuma, muito menos motivação para reagir. A segunda bicada foi na outra bochecha  e não parou mais. Eustáquio parecia sorrir. Aparentava uma felicidade que jamais experimentara. Sentia sua alma encher de vida ao passo que sua carne era lentamente devorada. Sentia tanto prazer que esboçou uma tímida ereção logo abortada pelo velho, cego e insaciável urubú.
Após fartar-se, a ave cambaleante deixava para trás a carcaça finda quase que por completo, rodeada de vários Eusébios banhados com o sangue fresco de Eustáquio. O banquete fora digno das mesas de grandes reis, mas agora a gula cobrava-lhe o ônus de uma digestão impossível.
Vencido, enfim, por uma terrível congestão, o caquético urubú-rei, desprovido de qualquer majestade, caiu e subitmamente morreu sem que ao menos pudesse dar ao seu intestino a mínima chance de digerir Eustáquio. 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Além da escrivaninha

                                                        (Obra do artista plástico Zirley Ávila)



Ao longe cantou Crioulo, o galo de estimação e dono do quintal, quase despertando Jayme de um sono inebriante que parecia não ter mais fim.     
Na verdade, desejou que o canto fosse apenas uma breve consciência do que estava a sonhar e assim permitiria-se mais uns minutos de um merecido repouso. Mas Crioulo desta vez bradou aos quatro ventos, como se chamasse seu nome.
Jayme acordou.
Nas doze horas, ou talvez doze meses, que ficara desacordado, as palavras que se encontravam agora eternamente gravadas na cerejeira pareciam ter-lhe penetrado os poros dos braços cruzados que repousavam na escrivaninha, sob a cabeça adormecida para o mundo cronológico e viva para a dimensão dos delírios poéticos.
Ergueu-se da cadeira com algum desconforto, inclinando o corpo sobre a escrivaninha, para observar o céu noturno e cinzento, as galinhas que já buscavam seu refúgio no pé de figo e Crioulo, que observava imponente do alto de seu galho a movimentação em seu quintal.
Tornou a sentar vagarosamente e observou as ranhuras feitas no clímax de um arroubo que o levara à exaustão.
Leu e releu diversas vezes. Quando suas retinas não mais se deixavam enganar por cortes acidentais, fechou os olhos e com a ponta dos dedos perdia-se em êxtase com as curvas, os pontos, os verbos, as diferentes profundidades dos sentimentos ali descritos sobre ela, Zélia.
Assim ficou por mais algumas horas e teria ficado muito mais, não fosse uma lasca minúscula e pontiaguda espetar-lhe o dedo indicador da mão direita, interrompendo abruptamente seu transe.
Mas, por mais devoto que fosse de sua obra, sabia que Zélia ali, não se encontraria. Olhava a escrivaninha e seus olhos sorriam. Lembrava de Zélia e seu peito explodia. Pensava em sair e suas pernas tremiam.
Levantou-se, fechou a janela e tentou se virar, mas seu pé ficou preso entre a cadeira e o pé da mesa. Afastou a cadeira com o calcanhar, procurou pelo relógio e lembrou-se que o havia deixado na gaveta. Ao achar o relógio viu que marcava oito horas e trinta e dois minutos da noite anterior e nenhum segundo a mais. Deu corda, mas o velho relógio não reagiu. Jogou-o de volta na gaveta e ao fechá-la prendeu o dedo indicador da mão esquerda. Em um gesto de rara revolta chutou a gaveta, mas de pronto arrependeu-se e trêmulo ajoelhou-se perante ao móvel como se suplicasse seu perdão.
Abraçou-a e quando preparava para deixá-la, um prego solto fisgou-lhe a manga esquerda de sua camisa, causando-lhe um rasgo, porém desta vez não houve desarmonia. Desatou calmamente a manga do prego, virou-se e não mais olhou para trás.
Ao chegar na porta da rua ouviu um estrondo vindo da sala da escrivaninha. Hesitou em voltar, todavia não conteve o impulso e ao chegar à sala encontrou a cortina esvoaçante como se fossem braços estendidos em súplicas, a janela escancarada pelo vento, que uivava lamentos e molhava a superfície da escrivaninha.
Jayme caminhou calmamente até a janela e cerrou-a convincentemente. As cortinas sossegaram conformadas. Já a escrivaninha por fim absorveria as muitas gotas d´agua ali trazidas pelo vento, como se engolisse as lágrimas de uma separação inevitável.   
Jayme finalmente partia ao encontro de Zélia. Não estava muito seguro de que ainda a encontraria como e onde ela disse que o esperaria. Ela havia sido clara em sua carta quando se referiu à hora que o estaria esperando. Oito e meia. Na escadaria da igreja, onde encontravam-se quando os sonhos significavam muito mais do que planos. Quando cada minuto equivalia à uma vida. Quando o único tempo que realmente importava era aquele agora, sem amanhã.  
Alcançou a esquina no pé da ladeira da igreja, mas não a contornou. Seria como cruzar uma fronteira de um país estranho sem direito a retornar à pátria. Se olhasse e não a visse, demoraria o tempo que fosse necessário para conseguir voltar pra casa e encarar a escrivaninha. Se não olhasse jamais saberia. De qualquer forma, só lhe restaria uma escrivaninha rabiscada com memórias e dedicatórias que assombrariam seus pensamentos enquanto vivesse.
Sem alternativa lançou-se à rua e ao virar o rosto, avistou-a no sétimo degrau, bem ao meio da escadaria, com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos sustentando seu queixo. Ela sorriu o mais lindo de todos os sorrisos que uma boca ousaria oferecer.
Jayme sentou-se ao lado de Zélia. Zélia reclamou do atraso de Jayme. Dois minutos de pura inexatidão, segundo o relógio de Zélia.
Ali conversaram por horas, dias, semanas e meses sem abdicarem do agora. Falaram da vida, das palavras, dos hiatos, dos medos e, claro, dos sonhos.
Esticavam os braços e pinçavam as nuvens que por ali passavam, comendo-as acreditando ser algodão doce. Desvelaram o sol, recitaram poemas, assobiaram canções, deram-se as mãos.
Beijaram-se.
Amor tão imenso que não cabia na palavra amor. E tão eterno que o tempo parou em sinal de respeito.   

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Nativo do quinto dos Infernos




Depois de sua morte, Heitor foi recebido no céu com ressalvas. Nunca havia sido religioso enquanto vivo e até pregava aqui e acolá sua desconfiança de forma bem contundente, renegando inclusive ao próprio sobrenome como uma maneira de se desfazer, mesmo que unilateralmente, de qualquer vestígio da herança de fé de sua família.
A administração celestial, por sua vez, não tinha outra alternativa, segundo o regimento interno, senão acolher aquela alma recém desencarnada. Mas decidiram que, mesmo antes do purgatório, Heitor seria submetido à uma espécie de quarentena, cujo diagnóstico poderia determinar sua sentença que variaria entre ocupar uma função insignificante, como semear nuvens, lustrar estrelas ou até mesmo fazer pequenos reparos em camisolas, até ser definitivamente banido e enviado direto para o inferno.
Recebeu a punição máxima depois de quebrar inúmeras estrelas (há quem diga que propositalmente), semear nuvens ocas pelas quais vazavam anjos que quebravam suas asas e não podiam desempenhar suas tarefas fundamentais e esquecer inúmeras agulhas emaranhadas nas costuras mal feitas, que acabavam por espetar anjos e santos.
Fez suas malas resignadamente e lá se foi  terra adentro, cada vez mais fundo, cada vez mais quente. De cara ao chegar, reencontrou um de seus únicos e melhores amigos, Anselmo. Recebeu as boas vindas com tapinhas nos ombros e um chute de surpresa nas costas que o fez cair de cara e peito na lama quente. Ao levantar-se procurou pela mala, mas no momento em que caía, soltou-a e a perdeu de vista. De certo fora roubada e suas vestes zombadas e finalmente rasgadas, pois ali elas não teriam nenhuma serventia.
Caminhou por algumas horas com as pernas enterradas até os joelhos na lama e lodo fedorento até que aproximou-se de um palácio gótico, com esculturas escabrosas e grades de ferro maciço. Ouvia uma música que alternava notas dissonantes que culminavam em estribilhos de extrema euforia, que ficava mais alta, mais intensa ao passo que chegava mais perto.
Seguiu palácio a dentro sem ser incomodado, guiado pela música que já palpitava em seu peito, quando finalmente alcançou o corredor que levaria ao salão onde a suposta festa se realizava.
Quando adentrou o salão, a música parou. Houve um silêncio sepulcral. O vazio era sentido em todas as cinco paredes, pilastras e tochas, que ali repousavam intactas aparentemente há séculos, possivelmente milênios.
Caminhou em volta do meio do salão onde havia o desenho de um bode. Aproximou-se e olhou bem nos olhos do animal de cornos espiralados. Fitou-o por alguns minutos e pôs-se a sapatear sobre a figura, ora arrastando os pés sobre ela como se quisesse apagá-la, ora chutando a cabeça com muita virilidade, até que exausto sucumbiu e deitou-se sobre ela. A música explodiu no salão que logo ficou tomado de criaturas inadjetiváveis aos olhos humanos, que dançavam com furor, rodopiavam no ar, se chocavam, gargalhavam e bebiam algo inodoro que lhe foi oferecido. A princípio ressabiado recusou, mas foi seguro por duas das criaturas que enfiaram a garrafa em sua boca, fazendo-o beber quase a metade da bebida infernal. E gostou, a ponto de pedir mais e mais. Quanto mais bebia, mais as criaturas iam ganhando formas reconhecíveis e familiares. Ao término de cinco garrafas reconhecia a todos como companheiros de longa data, que o saudavam e celebravam sua chegada com tanta alegria que há rumores de que a esbórnia era ouvida no céu e que as nuvens estremeciam.
- Mas qual seria o motivo para tanta extravagância de alegria? Perguntou Heitor ao velho amigo do portão que lá também estava a celebrar em meio a todos os outros.
- Eles nasceram, foram criados e viverão por toda eternidade neste lugar. Não conhecem o tal mundo dos humanos. Sequer concebem um céu. Não pode haver lugar melhor para eles do que a própria casa. Sua presença aqui é mais do que ilustre. Celebram a ti, como fizeram a mim. Não te julgaram, na verdade esperam que você o faça com relação a eles. Por isso esforçam-se para que você se sinta tão à vontade que decida não ir embora. Explicou Anselmo.
- Quer dizer que o inferno é bom e que os demônios são bonzinhos?
- Quem criou esses nomes não foram eles. Aliás, eles sabem que são conhecidos assim e pouco se importam.
A conversa foi interrompida por mais bebida, mais danças e gargalhadas que duraram séculos.
Por fim, Heitor lá fez morada. Trabalha como uma espécie de mestre de cerimônias, dando as boas vindas a todos que para lá são mandados. Sente-se tão em casa que vive dizendo que lá nasceu, foi criado e que jamais estivera em outro lugar. E por mais que isso pareça falso, não deixa de ter uma dose de verdade cínica curtida no amargor do sarcasmo.   
Aos que duvidam de Heitor, que lhe façam uma visita e tirem suas próprias conclusões. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

As Bodas de Ouro de Jair e Lenir




      Um furo na mangueira de gás praticamente imperceptível, não porém, para a cabeça desgastada de um velho prego na parede, onde um armário de madeira prensada sustentava-se desde a data de sua instalação por um dos padrinhos de casamento de Jair e Lenir. 
         O interruptor já amarelado e já viúvo do espelho que o adornava ao passo que escondia os fios desencapados que encontravam suas terminações de cobre entrelaçadas aos furos dos disjuntores de ferro pintados de preto, ali colocados quando da construção da casa, concluída parcialmente, porém em condições mínimas para ser habitada três meses antes do casamento de Jair e Lenir. 
    Os óculos já embaçados e remendados por esparadrapos e fios de arame que repousavam sobre a mesa de cabeceira, esquecidos pela amnésia cada vez mais constante devido à degeneração neuronal, causada pela avançada idade não refletida no porta retrato que ainda resiste à gravidade de forma inexplicável ao lado dos óculos que magnificam a imagem contida no papel fotográfico contendo a imagem do brinde nupcial de Jair e Lenir.
        A faísca que provocou a chama que alastrou-se primeiro pelo chão, atingindo os panos de prato colocados na alça do fogão para que secassem após a lavagem da louça do jantar de comemoração das bodas de ouro testemunhada por padrinhos, irmãos e irmãs, filhos e filhas, netos e bisnetos, cão de guarda, amigos e amigas, vizinhos e parceiros de carteado, que sem exceção já se encontravam em seus respectivos domicílios na hora do incidente referido que terminou por queimar o restante da casa citada, com os novos armários que substituíram os antigos mencionados e que não pouparam nem os óculos remendados já descritos, nem o porta-retratos à prova de gravidade, foi causada pelo acionamento do interruptor amarelado, dependurado na parede de azulejos antiquados por um invasor que buscava riquezas reluzentes, recebidas em ocasiões especiais com a já registrada comemoração e jamais deixadas para trás quando já longe, em viagem de lua-de-mel pelo interior de Minas adornando os pescoços, dedos, pulsos e orelhas de Jair e Lenir.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A Loja de Espelhos




           Amanda finalmente conseguira um emprego de vendedora em uma loja de decoração após meses de incessante procura e tentativas frustradas, que quase fizeram-na crer que a maternidade seria sua sina, ainda que não houvesse conhecido quaisquer candidatos à altura para o cargo de coautor.
     Não era culpa da escassez de ofertas de trabalho, tampouco de pretendentes apaixonados. A razão da demora era a abundância de critérios e regras, ou mais precisamente do critério de suas regras.
           Aos incautos poderia causar espanto o fato de que o emprego finalmente aceito, e este é o termo mais acurado para o caso, não figura entre as dez carreiras mais desejadas pelos filhos da classe média pseudoeuropéia brasileira.
       A vaga foi escolhida a dedo por Amanda e o setor não poderia ser outro senão o de espelhos decorativos.
      É preciso saber que Amanda era uma jovem de vinte e cinco anos, formada em sociologia, com mestrado em ciências sociais aplicadas, que perdeu a visão aos dois anos de idade devido a um glaucoma.
        Sua primeira semana, como ela própria já esperava, não foi promissora do ponto de vista comercial. Nenhum espelho fora vendido e os poucos clientes com quem teve a chance de negociar deram desculpas óbvias como “estou só olhando”, o que não deixa também de ser redundante no referido setor.
          As semanas seguintes não foram tão diferentes da primeira, a ponto de sua posição ficar ameaçada sob a justificativa de não cumprimento de metas. Embora algumas poucas unidades terem sido vendidas, o descontentamento do gerente geral da loja era nítido aos olhos de todos e aos ouvidos de Amanda, que não precisava de palavras, apenas de tons de voz para desnudar intenções alheias.
         Não se deixava pressionar, mas sabia que seu tempo, pelo menos ali, estava contado.
        Adotou um estilo mais agressivo de abordagem, convencida de que a meta do setor era não apenas irreal, como banal. Precisava de uma cliente, e não bastava ser qualquer uma. Deveria ser a cliente ideal, feito sob sua encomenda peculiar.
     Quando ouviu aquela voz suave que indagava sobre a responsabilidade pelo setor, não teve dúvidas de que Fernanda era a mais aguardada de todas as clientes.
        Após Fernanda descrever em linhas gerais o que procurava, Amanda a conduziu ao seu espelho favorito. Tinha linhas sóbrias, com moldura negra de madeira maciça, muito pesado e imponente.
- O que você acha desse? Perguntou Amanda.
- Sem dúvida é lindo. É forte e robusto. Você se importaria se eu te dissesse que você fica linda nele?
         Amanda fora completamente surpreendida pela franqueza de Fernanda.
- Como... como assim?
      Fernanda não se esquivou. Não poderia fingir que não percebera a peculiaridade de Amanda. Também sabia que enxergar não é sinônimo de ver, porém o reflexo no espelho não estava ao alcance dos sentidos de Amanda, a não ser por uma narrativa.
- Você nesse espelho fica como uma senhora altiva, que impõe respeito, cuja dignidade é inabalável. Não sei se é a moldura ou a altura do espelho.
- Lembrei-me de minha mãe com seus seios fartos e pernas firmes e torneadas que realçam essas características que você mencionou.
- Por esta descrição posso supor que você se parece com ela.
- Acho que sim. Talvez você gostaria de ver algo mais despojado, menos tradicional. Sugeriu uma desconcertada Amanda.
     Fernanda aceitou a sugestão e caminharam cerca de cinco passos à esquerda do primeiro espelho. Estavam de frente à uma moldura de flores variadas e coloridas, feitas de ferro, pintadas à mão.
- Então, o que acha desse?
- Suave, romântico e até bucólico. Refletida nele, você fica tão graciosa como uma criança correndo por campos verdes, descalça, de vestido ao vento, soltando gargalhadas descompromissadas e sinceras.
       Amanda sentiu-se nua diante daquela narrativa, mas não escondia o largo sorriso que só as almas puras tem o privilégio de ostentar.
- Minha irmã.
- Como disse? Indagou Fernanda, ao acordar de um transe momentâneo.
- Assim era minha irmã, Rita. Ajudou minha mãe a me criar. Quando fui para a faculdade pagou meus estudos, trabalhando em dois empregos, sem jamais demonstrar nenhum cansaço. Sempre sorrindo, de bem com a vida e feliz por poder me ajudar. Nunca se casou. Para ela, o casamento seria uma forma séria de acabar com sua alegria de viver. E para ela, viver era brincar. Tinha uma pele tão cheirosa que  todos os perfumes se calavam  por onde ela passasse.
     Amanda descrevia sua querida irmã com tanta fluência que ela quase se materializava naquele espelho. Entretanto, ao se calar e suspirar de saudades, não mais ouvia a respiração de Fernanda, levando-a por um instante supor que sua tão esperada cliente se cansara de toda aquela conversa e fora embora. Sentimento este prontamente desautorizado pela tranquila voz de Fernanda.
- Se dizes que o sorriso dela era lindo eu acredito, só não posso concordar que seja mais do que o teu. E é o seu cheiro que dá vida às flores do espelho.
   Por mais que Amanda tentasse disfarçar sua felicidade sob uma postura formal e profissional, seus lábios grossos a venciam e se esticavam expondo aquela sequência irrepreensível de dentes brancos como carne de coco.
     Viram outros vários espelhos e molduras. Cada espelho, uma personagem da vida de Amanda. Lá estavam também, seu pai, tios e tias, amigas de infância, primos e primas.    Fernanda enfim, depois de muito procurar, fez uma escolha. Quis Amanda, de carne e osso.
      Amanda defendeu sua tese sobre múltiplas identidades e após a conclusão de seu doutorado tiveram duas filhas. Angela, gerada no útero de Fernanda, é suave e graciosa como Amanda, mas a sua audácia não deixa dúvidas da influência de Fernanda. Já Dandara, não é necessariamente sutil, assim como Fernanda também não o é. Mas os ancestrais de Amanda estão presentes na alma e pele negras de Dandara, no seu sorriso desconcertante, no perfume inebriante e na intelectualidade ímpar.
      Amanda nunca mais procurou emprego. Divide seu tempo entre as filhas, suas aulas, pesquisas e a loja de espelhos que abriu com Fernanda, a menina para muito além dos seus olhos.      
   

domingo, 23 de setembro de 2012

Boa noite e bom trabalho


 
 


Esta não é uma carta, nem uma mensagem implícita para atiçar a sanha dos decodificadores fanáticos.

Vamos combinar que haverá entre nós uma coautoria onde eu tomei a iniciativa de escrever e você de vivenciar as palavras para além de suas formas e paradigmas.

Minha tarefa é básica e direta. Decidi escrever em meio a uma crise de insônia e só tenho algumas coisas a serem ditas que não tomarão muito do meu tempo de sono desperdiçado.

Já a sua, devo admitir, trata-se de desapegar-se e até mesmo abdicar de outras tarefas que se não mais importantes, pelo menos mais prazerozas possivelmente seriam.

Por isso você tem a primeira oportunidade de parar por aqui e não se comprometer. Daremos a parceria por encerrada e cada um continua a trilhar seu caminho sem maiores danos à breve amizade. Caso resolva continuar, as próximas linhas serão dedicadas às questões simples, porém primordiais.

Sem mais rodeios esta mensagem aberta é para você que tomou a decisão fundamental de sair da cama mesmo que a muito penar para exercer a sua atividade prioritária, seja ela remunerada ou não, a fim de promover seus desejos materiais e imateriais da categoria dos sonhos para a categoria das ilusões factíveis.

A respeito da cama, sair dela não seria necessariamente um problema se não investíssemos tanto em colchões que massageiam o corpo, travesseiros que fazem cafuné e cobertores que acariciam a alma. Caprichos que fazem bem, mas custam caro.

O que inevitavelmente nos leva à observação das atividades prioritárias como estudar e trabalhar, ambas podendo ser ou não remuneradas.

Para você que estuda e não é remunerado para isso, em um futuro breve, pelo menos do ponto de vista de quem não mais goza do privilégio da irresponsabilidade autorizada, seus esforços serão medidos, contabilizados e categorizados para fins de organização social. Com efeito, sua remuneração não representará equitativamente o seu valor como ser-humano, mas a sua serventia enquanto ser-vir-como-lucro-humano.

Aos que estudam e são remunerados para isso raramente se vê tanta paixão em outras atividades quando comparadas à esta. Independente de profissão, cargo ou incubência. Este é o detalhe que os difere dos trabalhadores remunerados por cumprir horários e rotinas. Não menos dignos, todavia mais anestesiados.

Por fim, os que trabalham e não são remunerados, por vontade própria ou não, de forma aleatória ou sistemática, com ou sem amparo legal, não podem nem devem deixar fenecer o desejo de reconhecimento, remunerado ou não, realizado pelo gesto fraterno ou pela luta armada.

Mas independentemente da sua categoria, você saiu da cama onde repousava justamente.

Tamanha gana e dor terão sido inúteis perante às tais ilusões factíveis. São ilusões, pois ao término de sua empreitada nesse mundo não farão parte de seu enxoval funerário. São factíveis pela falsa sensação da possibilidade de obtenção.

O que nos sobra? O que terá sido verdadeiro? Qual é a justiça de seu sono?

 Fora de tudo o que foi dito acima encontra-se você que não se conhece a não ser por julgar aquilo que as outras pessoas são e também deixam de ser.

Você que não teve escolha a não ser participar do diálogo infinito dos corpos e seus respectivos portadores com as regras que os cavalgam.

Você que destituído de moedas busca cicatrizar a vida com poesia, música e tintas. Que mesmo oriundo de outrora se encontra no agora e não se julga sabedor do porvir.

Que  saboreia os desinvernos fora de época e não teme os desverões necessários.

Que constitui uma unidade indivisível da legião dos solitários, mas que procura cercar-se de quantas legiões idênticas forem possíveis e necessárias.

Que assovia sua canção favorita fora do ritmo, do tom, batucando com os dedos despretensiosamente para platéia nenhuma e ainda dá bis.

Você que já voou de costas com braçadas largas e o peito estufado, oferecendo-se ora ao sol, ora às estrelas e fez pouso suave no pé da mangueira no quintal de sua avó.

Que rasga casca de manga com os dentes e lambuza as bochechas. Que começa a comer a maçã pelo meio, mas ao contrário dos estadunidenses também come o restante. Que come a goiaba bem devagar e poupa a vida do bicho.

Que pisa forte na poça d´agua e chuta pedrinhas para que cruzem o caminho de outros pés.

Que agora já pensa em tantas outras formas de contentamento que esta mensagem não mais depende de quem a começou.

 De forma que já posso apagar a luz, fechar meus olhos e ter a sensação ilusória, contudo factível, de uma jornada de sono justa, desprovida de obrigações, porém repleta de saudades dos tempos em que para poder sonhar era preciso desacordar.

domingo, 20 de maio de 2012

A outra versão da memória




     Ficou incumbido de organizar os pertences de sua mãe, que não eram poucos e ocupavam espaços além das fronteiras concretas da casa velha.

     Não tinha talento para distinguir objetos em tantas categorias, de forma que procurou executar a penosa tarefa de maneira bem objetiva. Seriam coisas rentáveis e coisas doadas. Simples assim.

     Os irmãos abstiveram-se dos julgamentos, reclames e ostentações. Só não abriram mão da desobrigação.

      À sua frente, algo em torno de um século de intenções acumuladas. Primeiro, foram-se os infinitos pares de sapatos, vestidos e outros seres inanimados que tocaram o findo corpo. Todos doados a destinatários indigentes, transeuntes oportunistas, habitantes do mundo à parte.

   Tudo que reluzia seria derretido para retornar ao estado sólido somente designados como objetos a serem trocados por algo semelhante, de uso corrente.

    Duas pilhas de estorvo se acumulavam em dois cômodos diferentes e a empreitada se aproximava do fim. A mobília já nua de seus penduricalhos aguardava sua vez de ser desfeita.

   No último compartimento de uma estante da sala estar havia tres caixas curiosamente discriminadas pelos seguintes temas: Augusto, Gustavo e Rodolfo. A primeira e a última postas de lado, seriam devidamente entregues.  A restante permaneceu intacta e era observada com aguçada covardia.

   Ali deveriam estar contidas as relíquias extirpadas de seu corpo, seu vestígio de ligação carnal com uma carne já não mais presente. Dos registros momentâneos, não faltaria sua versão debilóide, de pouca fala, cabelos ralos e boca desdentada. Também constaria o dia da redenção em que ultrapassara a fronteira entre o paganismo e a salvação através da escravidão voluntária.

   Algum recorte de papel público que muito orgulhou à sua guardiã e que exibido à exaustão, provocava a inveja alheia.

   Havia o primeiro isso, a primeira aquilo e a última vez em que alguem fez algo em algum lugar no dia tal.

   Cansou de imaginar o que deveria cobrá-lo de suas memórias e decidiu dar-lhe o mesmo fim que todos os demais. Mas, precisaria primeiramente discriminar entre inflamáveis e enterráveis.

   Abriu a caixa e encontrou uma câmera fotográfica e filmadora de alta definição numa embalagem lacrada, uma linda caneta recarregável, um disco rígido externo de um tera de memória, tintas, pincéis, agulha, linha, estojo de maquiagem, um livro de receitas da culinária Tailandesa e um bloco de notas em branco. 

   Num arroubo de inveja abriu as caixas alheias e se deparou com quase tudo igual, com exceção de outras duas culinárias.