sexta-feira, 30 de julho de 2010

Fernheca

Fernheca era um personagem muito popular no pequeno vilarejo de Xenhenhem da mata. Apesar de seu nome soar estranho até para os habitantes locais, já havia sido incorporado ao vocabulário cotidiano. Vindo de lugar nenhum e filho de pai e mãe desconhecidos, foi adotado pelas famílias da localidade que o proviam com água, comida e abrigo. Era tão querido que se fosse candidato, venceria facilmente as eleições para a prefeitura do município se não fosse sua condição natural de bode. O motivo para tamanho prestígio do caprino é a chuva. A escassez das águas no sertão tem várias explicações científicas irrefutáveis que condenam a região à uma desertificação irreversível, mas a ciência jamais ousou explicar a influência do cocô de bode nos processos meteorológicos daquela cidadezinha em particular. Acreditavam que Fernheca produzia esterco mágico que ao se misturar com a terra produzia gases que subiam aos céus e formavam nuvens que por sua vez precipitavam, irrigando as hortas nos quintais das casinhas multicoloridas. Hortaliças verdes e grandes era um milagre naquela sequidão. Legumes como cenouras, beterrabas e pepinos coloriam as mesas modestas, mas fartas daquelas famílias. O sucesso do bode era tão grande que prefeitos de outras cidades pediam o bode emprestado para trazer-lhes um pouco de água para aplacar a sede de seus eleitores. De forma que o prefeito de Xenhenhem da Mata resolveu lucrar com o bode. Avisou que o bode estava à venda. Mandou as professoras ensinarem nas escolas que mesmo o bode pertencendo a um só dono, seus milagres continuariam a acontecer para o bem de todos. A população desconfiada discutia nas biroscas, esquinas e até nas cadeias. Um movimento contrário à venda do bode, liderado por Jeremias, o vingador do sertão, temido por suas aventuras no cangaço, em defesa dos famintos e sedentos e contra a tirania dos coronéis, começou a tomar forma e foi contagiando o povo até então pacato. Entretanto, a insurgência não foi suficiente para evitar que Fernheca fosse a leilão realizado na calada da noite na fazendo do Coronel Aristides, sendo arrematado pelo próprio. O preço irrisório revoltou a todos, mas o pior ainda estava por vir. Não somente a população havia sido privada da gloriosa companhia do bode, mas como também seu esterco passou a ser vendido pelo coronel a preço de ouro, em saquinhos de meio quilo, lucrando com o produto mágico por seis meses. Acontece que para o azar do coronel e principalmente do bode (já explico mais adiante), a chuva insistia em não dar o ar da graça, apesar do município registrar plantação recorde de semente de cocô de bode. Chegaram à óbvia constatação que se o bode não fosse alimentado pelo povo, seu bagaço não surtiria o mesmo efeito. O produto encalhou e os estoques de cocô de bode chegaram a níveis alarmantes, levando o ganancioso e empreendedor coronel a encerrar as atividades do bode (agora sim, o destino do bode). O bode foi servido em grande banquete. Teve buchada, fizeram das tripas lingüiça, até os olhos serviram aos convidados. O povo liderado por Jeremias ficou na espreita do lado de fora da fazenda e quando todos se deliciavam com as iguarias caprinas, as dependências da fazenda foram tomadas de assalto e a cabeça de Fernheca recuperada. Ainda havia a esperança de que a chuva voltasse a cair se a cabeça do bode fosse pendurada em praça pública, mas a homenagem não surtiu o efeito esperado. Jeremias, empolgado com o grande crescimento de sua popularidade, decidiu concorrer à prefeitura e ganhou facilmente as eleições contra Severino Pé de Serra, o candidato do coronelismo e forrozeiro de profissão. Jeremias trouxe o progresso e a prosperidade para Xenhenhem da mata. Até a chuva tinha o prazer de visitar a cidade. Vinha tanto que até fez morada, a ponto de precisarem construir uma ponte. As hortas cresceram mais verdes do que nunca e ninguém nem mais se lembra de Fernheca, o bode enganador.
Acima Fernheca em seus tempos de glória e abaixo o que sobrou

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