quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Alegoria do Apê


Imagine uma família vivendo em uma moradia em forma de apartamento com apenas uma porta e várias janelas cobertas por uma película bloqueadora de claridade que conserva o outro lado em estado noturno constante.

Rompendo com a penumbra interna, uma luz azulada mantém os residentes do cubículo de olhos moribundos com suas pálpebras rendidas e respiração espaçada. São seres com estômagos proeminentes, dieta baseada na combinação de carboidrato com derivado lácteo sobreposto e derretido, salpicado com ervas aromáticas. A luz emana de uma janela eletrônica amparada por uma estrutura feita com madeira de procedência desconhecida.

Olham fixamente à janela eletrônica que filtra o exterior da unidade habitacional. Tomam por realidade não somente o turbilhão de imagens que adormecem suas mentes, mas também as macaquices realizadas no ínterim de trinta segundos, os “boa-noite” mecânicos, o brado de cineastas falidos e intrigas fictícias veladas. Riem de piadas ridas. Semanalmente desliza por debaixo da porta um calhamaço de nome imperativo, que determina como se deve raciocinar, ou deixar de fazê-lo. Também há entregas diárias de aparadores de fezes animais, que são lidos antes de cumprir com sua função.

Agora pense que um dos residentes é arrancado da letargia e arremessado ao mundo externo. Ao se deparar com tanta luminosidade sofrerá, pois seus olhos e ouvidos habituados ao filtro ofuscar-se-ão com tanta realidade. Resistirá até que o óbvio ululante esbofeteie-lhe a face.

Voltará ao quadrado escuro e tentará se passar pelo portador da revelação. Mas logo retomará seu lugar demarcado pelo peso de suas fartas nádegas, pois a trama clichê já vai começar.

Os dois estalos do planeta Vênus em sua forma prateada retomam a hipnose.

Um comentário:

  1. Perfeita adaptação do conto da caverna para os dias de hoje;
    Pena que a realidade televisiva acaba sendo ainda mais falsa do que a das sombras formadas na parede, e que dessa vez os protagonistas não estão acorrentados (fisicamente);
    para variar, muuuito bom!

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