segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Cobra Criada




Sapatos pretos ingleses sobre a mesa de seu gabinete.
Televisão ligada na emissora parceira, plantão de notícias.
Multidão dirigindo-se ao palácio, greve geral, apitos, faixas e camisas.
Lembra-se da Tia Verônica. Ela pegou sua mão e o levou à mesa onde outros três colegas já se ocupavam com giz de cêra e lixa. Limpou as lágrimas e pôs-se a desenhar.
Pensou em Tia Rita e as intermináveis aulas de tabuada. Responda rápido ou sairá por último. Essa era a regra. Veja só, até Mariana saiu antes de ti, menino.
De Dona Carmem herdou o dogma, aqui é estudo, família é educação.
Educação de família que outrora ocupava o mesmo banco, na mesma sala com a mesma Dona Carmem. De geração em geração, perpetua-se a lição.
Como esquecer de Tia Simone, o primeiro fetiche. A primeira mulher, mesmo que à distância, mesmo que em pensamento, mesmo que solitariamente. Era sua, de mais ninguém.
Odiava História, mas amava Teresa. Não havia Química que o fizesse odiar Odair. Muito menos seriam as leis da Física capazes de interferir em sua amizade extra-acadêmica com Euclides.
O melhor de todos os esportistas de sua geração, algoz de Nilton, em qualquer modalidade proposta.
Deveras condecorado, saudado, exemplificado, contado e cantado.
O número um. O nota dez. O nata da nata.
O volume da televisão encoberto pelos apitos, gritos, cantos ao vivo do lado de fora.
Greve, aumento, dignidade, respeito, mas nada de poder, nada de autonomia, nada de tudo que lhes pertença ou caiba de fato.
 Sapatos pretos ingleses sobre a mesa, telefone na mão, polícia na rua, porrada na multidão, sorriso no rosto, olho no diploma na parede.
Sorriso no rosto.

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