sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Nativo do quinto dos Infernos




Depois de sua morte, Heitor foi recebido no céu com ressalvas. Nunca havia sido religioso enquanto vivo e até pregava aqui e acolá sua desconfiança de forma bem contundente, renegando inclusive ao próprio sobrenome como uma maneira de se desfazer, mesmo que unilateralmente, de qualquer vestígio da herança de fé de sua família.
A administração celestial, por sua vez, não tinha outra alternativa, segundo o regimento interno, senão acolher aquela alma recém desencarnada. Mas decidiram que, mesmo antes do purgatório, Heitor seria submetido à uma espécie de quarentena, cujo diagnóstico poderia determinar sua sentença que variaria entre ocupar uma função insignificante, como semear nuvens, lustrar estrelas ou até mesmo fazer pequenos reparos em camisolas, até ser definitivamente banido e enviado direto para o inferno.
Recebeu a punição máxima depois de quebrar inúmeras estrelas (há quem diga que propositalmente), semear nuvens ocas pelas quais vazavam anjos que quebravam suas asas e não podiam desempenhar suas tarefas fundamentais e esquecer inúmeras agulhas emaranhadas nas costuras mal feitas, que acabavam por espetar anjos e santos.
Fez suas malas resignadamente e lá se foi  terra adentro, cada vez mais fundo, cada vez mais quente. De cara ao chegar, reencontrou um de seus únicos e melhores amigos, Anselmo. Recebeu as boas vindas com tapinhas nos ombros e um chute de surpresa nas costas que o fez cair de cara e peito na lama quente. Ao levantar-se procurou pela mala, mas no momento em que caía, soltou-a e a perdeu de vista. De certo fora roubada e suas vestes zombadas e finalmente rasgadas, pois ali elas não teriam nenhuma serventia.
Caminhou por algumas horas com as pernas enterradas até os joelhos na lama e lodo fedorento até que aproximou-se de um palácio gótico, com esculturas escabrosas e grades de ferro maciço. Ouvia uma música que alternava notas dissonantes que culminavam em estribilhos de extrema euforia, que ficava mais alta, mais intensa ao passo que chegava mais perto.
Seguiu palácio a dentro sem ser incomodado, guiado pela música que já palpitava em seu peito, quando finalmente alcançou o corredor que levaria ao salão onde a suposta festa se realizava.
Quando adentrou o salão, a música parou. Houve um silêncio sepulcral. O vazio era sentido em todas as cinco paredes, pilastras e tochas, que ali repousavam intactas aparentemente há séculos, possivelmente milênios.
Caminhou em volta do meio do salão onde havia o desenho de um bode. Aproximou-se e olhou bem nos olhos do animal de cornos espiralados. Fitou-o por alguns minutos e pôs-se a sapatear sobre a figura, ora arrastando os pés sobre ela como se quisesse apagá-la, ora chutando a cabeça com muita virilidade, até que exausto sucumbiu e deitou-se sobre ela. A música explodiu no salão que logo ficou tomado de criaturas inadjetiváveis aos olhos humanos, que dançavam com furor, rodopiavam no ar, se chocavam, gargalhavam e bebiam algo inodoro que lhe foi oferecido. A princípio ressabiado recusou, mas foi seguro por duas das criaturas que enfiaram a garrafa em sua boca, fazendo-o beber quase a metade da bebida infernal. E gostou, a ponto de pedir mais e mais. Quanto mais bebia, mais as criaturas iam ganhando formas reconhecíveis e familiares. Ao término de cinco garrafas reconhecia a todos como companheiros de longa data, que o saudavam e celebravam sua chegada com tanta alegria que há rumores de que a esbórnia era ouvida no céu e que as nuvens estremeciam.
- Mas qual seria o motivo para tanta extravagância de alegria? Perguntou Heitor ao velho amigo do portão que lá também estava a celebrar em meio a todos os outros.
- Eles nasceram, foram criados e viverão por toda eternidade neste lugar. Não conhecem o tal mundo dos humanos. Sequer concebem um céu. Não pode haver lugar melhor para eles do que a própria casa. Sua presença aqui é mais do que ilustre. Celebram a ti, como fizeram a mim. Não te julgaram, na verdade esperam que você o faça com relação a eles. Por isso esforçam-se para que você se sinta tão à vontade que decida não ir embora. Explicou Anselmo.
- Quer dizer que o inferno é bom e que os demônios são bonzinhos?
- Quem criou esses nomes não foram eles. Aliás, eles sabem que são conhecidos assim e pouco se importam.
A conversa foi interrompida por mais bebida, mais danças e gargalhadas que duraram séculos.
Por fim, Heitor lá fez morada. Trabalha como uma espécie de mestre de cerimônias, dando as boas vindas a todos que para lá são mandados. Sente-se tão em casa que vive dizendo que lá nasceu, foi criado e que jamais estivera em outro lugar. E por mais que isso pareça falso, não deixa de ter uma dose de verdade cínica curtida no amargor do sarcasmo.   
Aos que duvidam de Heitor, que lhe façam uma visita e tirem suas próprias conclusões. 

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