domingo, 23 de setembro de 2012

Boa noite e bom trabalho


 
 


Esta não é uma carta, nem uma mensagem implícita para atiçar a sanha dos decodificadores fanáticos.

Vamos combinar que haverá entre nós uma coautoria onde eu tomei a iniciativa de escrever e você de vivenciar as palavras para além de suas formas e paradigmas.

Minha tarefa é básica e direta. Decidi escrever em meio a uma crise de insônia e só tenho algumas coisas a serem ditas que não tomarão muito do meu tempo de sono desperdiçado.

Já a sua, devo admitir, trata-se de desapegar-se e até mesmo abdicar de outras tarefas que se não mais importantes, pelo menos mais prazerozas possivelmente seriam.

Por isso você tem a primeira oportunidade de parar por aqui e não se comprometer. Daremos a parceria por encerrada e cada um continua a trilhar seu caminho sem maiores danos à breve amizade. Caso resolva continuar, as próximas linhas serão dedicadas às questões simples, porém primordiais.

Sem mais rodeios esta mensagem aberta é para você que tomou a decisão fundamental de sair da cama mesmo que a muito penar para exercer a sua atividade prioritária, seja ela remunerada ou não, a fim de promover seus desejos materiais e imateriais da categoria dos sonhos para a categoria das ilusões factíveis.

A respeito da cama, sair dela não seria necessariamente um problema se não investíssemos tanto em colchões que massageiam o corpo, travesseiros que fazem cafuné e cobertores que acariciam a alma. Caprichos que fazem bem, mas custam caro.

O que inevitavelmente nos leva à observação das atividades prioritárias como estudar e trabalhar, ambas podendo ser ou não remuneradas.

Para você que estuda e não é remunerado para isso, em um futuro breve, pelo menos do ponto de vista de quem não mais goza do privilégio da irresponsabilidade autorizada, seus esforços serão medidos, contabilizados e categorizados para fins de organização social. Com efeito, sua remuneração não representará equitativamente o seu valor como ser-humano, mas a sua serventia enquanto ser-vir-como-lucro-humano.

Aos que estudam e são remunerados para isso raramente se vê tanta paixão em outras atividades quando comparadas à esta. Independente de profissão, cargo ou incubência. Este é o detalhe que os difere dos trabalhadores remunerados por cumprir horários e rotinas. Não menos dignos, todavia mais anestesiados.

Por fim, os que trabalham e não são remunerados, por vontade própria ou não, de forma aleatória ou sistemática, com ou sem amparo legal, não podem nem devem deixar fenecer o desejo de reconhecimento, remunerado ou não, realizado pelo gesto fraterno ou pela luta armada.

Mas independentemente da sua categoria, você saiu da cama onde repousava justamente.

Tamanha gana e dor terão sido inúteis perante às tais ilusões factíveis. São ilusões, pois ao término de sua empreitada nesse mundo não farão parte de seu enxoval funerário. São factíveis pela falsa sensação da possibilidade de obtenção.

O que nos sobra? O que terá sido verdadeiro? Qual é a justiça de seu sono?

 Fora de tudo o que foi dito acima encontra-se você que não se conhece a não ser por julgar aquilo que as outras pessoas são e também deixam de ser.

Você que não teve escolha a não ser participar do diálogo infinito dos corpos e seus respectivos portadores com as regras que os cavalgam.

Você que destituído de moedas busca cicatrizar a vida com poesia, música e tintas. Que mesmo oriundo de outrora se encontra no agora e não se julga sabedor do porvir.

Que  saboreia os desinvernos fora de época e não teme os desverões necessários.

Que constitui uma unidade indivisível da legião dos solitários, mas que procura cercar-se de quantas legiões idênticas forem possíveis e necessárias.

Que assovia sua canção favorita fora do ritmo, do tom, batucando com os dedos despretensiosamente para platéia nenhuma e ainda dá bis.

Você que já voou de costas com braçadas largas e o peito estufado, oferecendo-se ora ao sol, ora às estrelas e fez pouso suave no pé da mangueira no quintal de sua avó.

Que rasga casca de manga com os dentes e lambuza as bochechas. Que começa a comer a maçã pelo meio, mas ao contrário dos estadunidenses também come o restante. Que come a goiaba bem devagar e poupa a vida do bicho.

Que pisa forte na poça d´agua e chuta pedrinhas para que cruzem o caminho de outros pés.

Que agora já pensa em tantas outras formas de contentamento que esta mensagem não mais depende de quem a começou.

 De forma que já posso apagar a luz, fechar meus olhos e ter a sensação ilusória, contudo factível, de uma jornada de sono justa, desprovida de obrigações, porém repleta de saudades dos tempos em que para poder sonhar era preciso desacordar.

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