terça-feira, 13 de novembro de 2012

Além da escrivaninha

                                                        (Obra do artista plástico Zirley Ávila)



Ao longe cantou Crioulo, o galo de estimação e dono do quintal, quase despertando Jayme de um sono inebriante que parecia não ter mais fim.     
Na verdade, desejou que o canto fosse apenas uma breve consciência do que estava a sonhar e assim permitiria-se mais uns minutos de um merecido repouso. Mas Crioulo desta vez bradou aos quatro ventos, como se chamasse seu nome.
Jayme acordou.
Nas doze horas, ou talvez doze meses, que ficara desacordado, as palavras que se encontravam agora eternamente gravadas na cerejeira pareciam ter-lhe penetrado os poros dos braços cruzados que repousavam na escrivaninha, sob a cabeça adormecida para o mundo cronológico e viva para a dimensão dos delírios poéticos.
Ergueu-se da cadeira com algum desconforto, inclinando o corpo sobre a escrivaninha, para observar o céu noturno e cinzento, as galinhas que já buscavam seu refúgio no pé de figo e Crioulo, que observava imponente do alto de seu galho a movimentação em seu quintal.
Tornou a sentar vagarosamente e observou as ranhuras feitas no clímax de um arroubo que o levara à exaustão.
Leu e releu diversas vezes. Quando suas retinas não mais se deixavam enganar por cortes acidentais, fechou os olhos e com a ponta dos dedos perdia-se em êxtase com as curvas, os pontos, os verbos, as diferentes profundidades dos sentimentos ali descritos sobre ela, Zélia.
Assim ficou por mais algumas horas e teria ficado muito mais, não fosse uma lasca minúscula e pontiaguda espetar-lhe o dedo indicador da mão direita, interrompendo abruptamente seu transe.
Mas, por mais devoto que fosse de sua obra, sabia que Zélia ali, não se encontraria. Olhava a escrivaninha e seus olhos sorriam. Lembrava de Zélia e seu peito explodia. Pensava em sair e suas pernas tremiam.
Levantou-se, fechou a janela e tentou se virar, mas seu pé ficou preso entre a cadeira e o pé da mesa. Afastou a cadeira com o calcanhar, procurou pelo relógio e lembrou-se que o havia deixado na gaveta. Ao achar o relógio viu que marcava oito horas e trinta e dois minutos da noite anterior e nenhum segundo a mais. Deu corda, mas o velho relógio não reagiu. Jogou-o de volta na gaveta e ao fechá-la prendeu o dedo indicador da mão esquerda. Em um gesto de rara revolta chutou a gaveta, mas de pronto arrependeu-se e trêmulo ajoelhou-se perante ao móvel como se suplicasse seu perdão.
Abraçou-a e quando preparava para deixá-la, um prego solto fisgou-lhe a manga esquerda de sua camisa, causando-lhe um rasgo, porém desta vez não houve desarmonia. Desatou calmamente a manga do prego, virou-se e não mais olhou para trás.
Ao chegar na porta da rua ouviu um estrondo vindo da sala da escrivaninha. Hesitou em voltar, todavia não conteve o impulso e ao chegar à sala encontrou a cortina esvoaçante como se fossem braços estendidos em súplicas, a janela escancarada pelo vento, que uivava lamentos e molhava a superfície da escrivaninha.
Jayme caminhou calmamente até a janela e cerrou-a convincentemente. As cortinas sossegaram conformadas. Já a escrivaninha por fim absorveria as muitas gotas d´agua ali trazidas pelo vento, como se engolisse as lágrimas de uma separação inevitável.   
Jayme finalmente partia ao encontro de Zélia. Não estava muito seguro de que ainda a encontraria como e onde ela disse que o esperaria. Ela havia sido clara em sua carta quando se referiu à hora que o estaria esperando. Oito e meia. Na escadaria da igreja, onde encontravam-se quando os sonhos significavam muito mais do que planos. Quando cada minuto equivalia à uma vida. Quando o único tempo que realmente importava era aquele agora, sem amanhã.  
Alcançou a esquina no pé da ladeira da igreja, mas não a contornou. Seria como cruzar uma fronteira de um país estranho sem direito a retornar à pátria. Se olhasse e não a visse, demoraria o tempo que fosse necessário para conseguir voltar pra casa e encarar a escrivaninha. Se não olhasse jamais saberia. De qualquer forma, só lhe restaria uma escrivaninha rabiscada com memórias e dedicatórias que assombrariam seus pensamentos enquanto vivesse.
Sem alternativa lançou-se à rua e ao virar o rosto, avistou-a no sétimo degrau, bem ao meio da escadaria, com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos sustentando seu queixo. Ela sorriu o mais lindo de todos os sorrisos que uma boca ousaria oferecer.
Jayme sentou-se ao lado de Zélia. Zélia reclamou do atraso de Jayme. Dois minutos de pura inexatidão, segundo o relógio de Zélia.
Ali conversaram por horas, dias, semanas e meses sem abdicarem do agora. Falaram da vida, das palavras, dos hiatos, dos medos e, claro, dos sonhos.
Esticavam os braços e pinçavam as nuvens que por ali passavam, comendo-as acreditando ser algodão doce. Desvelaram o sol, recitaram poemas, assobiaram canções, deram-se as mãos.
Beijaram-se.
Amor tão imenso que não cabia na palavra amor. E tão eterno que o tempo parou em sinal de respeito.   

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