domingo, 20 de maio de 2012

A outra versão da memória




     Ficou incumbido de organizar os pertences de sua mãe, que não eram poucos e ocupavam espaços além das fronteiras concretas da casa velha.

     Não tinha talento para distinguir objetos em tantas categorias, de forma que procurou executar a penosa tarefa de maneira bem objetiva. Seriam coisas rentáveis e coisas doadas. Simples assim.

     Os irmãos abstiveram-se dos julgamentos, reclames e ostentações. Só não abriram mão da desobrigação.

      À sua frente, algo em torno de um século de intenções acumuladas. Primeiro, foram-se os infinitos pares de sapatos, vestidos e outros seres inanimados que tocaram o findo corpo. Todos doados a destinatários indigentes, transeuntes oportunistas, habitantes do mundo à parte.

   Tudo que reluzia seria derretido para retornar ao estado sólido somente designados como objetos a serem trocados por algo semelhante, de uso corrente.

    Duas pilhas de estorvo se acumulavam em dois cômodos diferentes e a empreitada se aproximava do fim. A mobília já nua de seus penduricalhos aguardava sua vez de ser desfeita.

   No último compartimento de uma estante da sala estar havia tres caixas curiosamente discriminadas pelos seguintes temas: Augusto, Gustavo e Rodolfo. A primeira e a última postas de lado, seriam devidamente entregues.  A restante permaneceu intacta e era observada com aguçada covardia.

   Ali deveriam estar contidas as relíquias extirpadas de seu corpo, seu vestígio de ligação carnal com uma carne já não mais presente. Dos registros momentâneos, não faltaria sua versão debilóide, de pouca fala, cabelos ralos e boca desdentada. Também constaria o dia da redenção em que ultrapassara a fronteira entre o paganismo e a salvação através da escravidão voluntária.

   Algum recorte de papel público que muito orgulhou à sua guardiã e que exibido à exaustão, provocava a inveja alheia.

   Havia o primeiro isso, a primeira aquilo e a última vez em que alguem fez algo em algum lugar no dia tal.

   Cansou de imaginar o que deveria cobrá-lo de suas memórias e decidiu dar-lhe o mesmo fim que todos os demais. Mas, precisaria primeiramente discriminar entre inflamáveis e enterráveis.

   Abriu a caixa e encontrou uma câmera fotográfica e filmadora de alta definição numa embalagem lacrada, uma linda caneta recarregável, um disco rígido externo de um tera de memória, tintas, pincéis, agulha, linha, estojo de maquiagem, um livro de receitas da culinária Tailandesa e um bloco de notas em branco. 

   Num arroubo de inveja abriu as caixas alheias e se deparou com quase tudo igual, com exceção de outras duas culinárias.


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