segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Ora Vejam Eustáquio



Esta é a história de um homem que por aqui esteve e se foi sem jamais ter sido.

Eustáquio era seu nome de batismo. Nunca teve apelidos, pois não havia amigos para afagar-lhe, ou inimigos dispostos a traumatizá-lo.
Nos tempos de escola, o jovem tímido e recolhido ao exílio dos romances clássicos desprezados pelos outros meninos que preferiam a bola, sequer era alvo de maledicências desconfiadas devido ao seu desprezo pelo violento esporte bretão.
O menino por diversas vezes esquecido pela mãe, que deveria buscá-lo na saída da escola às cinco, não parecia se abalar com os frequentes lapsos maternos e aproveitava para se meter entre as prateleiras empoeiradas da pequena, mas bem servida biblioteca.
Sua performance acadêmica digna de grandes louvores não era invejada pelos demais. Tampouco procuravam-no para ajudas desesperadas no fim de ano para as provas finais.
Eustáquio formou-se em administração de empresas e logo fez concurso público, sendo um dos primeiros colocados e prontamente convocado a assumir o seu posto em um banco do governo, de onde só viria a sair na ocasião de sua aposentadoria, quando a função que ocupava foi extinta por obsolecência. Em todos os longos anos como servidor público não foi capaz de fazer nenhuma amizade, nem mesmo para uma cervejinha depois do expediente, haja visto que seu turno era noturno, compensando cheques, fazendo lançamentos e débitos, um a um, manualmente com uma inseparável caneta descartável que reutilizava trocando-lhe o refil. Tarefa esta, diga-se de passagem, absolutamente metódica e compulsiva, pois comprava outras canetas descartáveis da mesma marca e modelo, retirava-lhes a carga, substituía pela terminada e desfazia-se do resto.
Viveu com os pais até que morressem e estabeleceu uma viuvez preventiva, repleta de ritos e manias que certamente inviabilizariam qualquer relação conjugal. Sua companhia era Eurico, herança dos pais que acharam o pequeno vira-latas em uma excursão para pessoas da terceira idade para Águas de Lindoia, na qual Eustáquio fez-se presente na ida, porém seu retorno somente se deu dois dias após o dos pais, pois seu nome não constava na lista de passageiros.
Eurico, criado com todas as regalias de filho caçula não abanava-lhe o rabo quando chegava do trabalho, nem mesmo deitava aos seus pés. Até latia como se fosse para um estranho. Era arredio aos carinhos de Eustáquio, sendo que por vezes até rosnava, chegando a morder a mesma mão que o alimentava invariavelmente duas vezes por dia, às dez da manhã e quatro da tarde, quando enfim poderia desfrutar de sua privacidade, pois a esta hora o suposto dono saía para trabalhar.
As folgas no banco eram sempre às sextas e sábados, quando aproveitava para praticar seu passatempo favorito, o xadrez. Jogava no clube de xadrez perto de sua casa e sempre contra o mesmo adversário, Eurípedes, que apenas trocava um boa noite automático com Eustáquio, disparava o relógio e os dois punham-se a fazer movimentos rápidos, como se já tivessem ensaiado todo o roteiro do jogo e estivessem ali apenas a cumprir a mera formalidade de mover as peças. Eurípedes sempre vencia e celebrava seus triunfos com uma risada contida, em boca fechada, com o sarcasmo dos que tripudiam sobre o cadáver do inimigo. Abanava a cabeça em agradecimento, desejava boa noite ao derrotado, levantava-se e desaparecia. Até que um dia, Eurípedes não compareceu ao sagrado compromisso. Era de causar estranheza que abrisse mão de mais um triunfo certo, mas as semanas seguintes não foram diferentes. Aquele que havia chegado mais perto do que se poderia dizer amigo de Eustáquio, que trocara mais palavras e acenos com ele do que qualquer outra pessoa, abdicava do posto de seu único e maior algoz. Teria Eurípedes se cansado das vitórias garantidas e procurado um adversário mais digno? Teria ele mudado de clube, cidade ou país? Teria se mudado para a Europa? Morrido?
Por semanas, Eustáquio esperou pelo implacável companheiro na mesma mesa, no mesmo horário. Começou a considerar a hipótese de alguem se comover com sua obstinada e disciplinada teimosia e vir dizer-lhe o paradeiro de Eurípedes, ou até mesmo oferecer-se para substituir o titular, mas nada aconteceu.  Tentou jogar sozinho, mas as peças brancas com as quais sempre jogava eram covardemente derrotadas pelas pretas. Sentindo-se humilhado, auto-flajelado, abandonou o xadrez.
Sua rotina continuava intocável e cumprida à risca, com exceção da substituição do hábito do xadrez por cartas de amor. Escrevia para remetente nenhum. Criava diversos personagens. Corajosos, apaixonados e apaixonantes, comprometidos com a única tarefa de fazer feliz a pessoa amada, mesmo que lhes custasse a vida. Curiosamente, todos os personagens chamavam-se Eusébio. Ora príncipe, ora atleta, às vezes multimilionário do petróleo, era capaz de amar com a intensidade de trombas d´água que se tornavam gotas de orvalho na imensidão do oceano, entre outros clichês patéticos. Eustáquio dava vida a Eusébios mil que suplicavam-lhe liberdade para ganhar o mundo, mas o criador tinha planos menos ambiciosos para as criaturas. Percebeu após décadas que tinha uma vizinha, Eulália, que era solteira e tinha uma cadelinha chamada Eunice.
Já se aproximava de sua aposentadoria, mas todos os dias ao sair para o trabalho colocava uma de suas cartas na caixa de correspondências de Eulália. Mesmo depois de aposentado, não abandonou o ritual de sair de casa sempre à mesma hora só para que se obrigasse a deixar lá na caixa de Eulália mais uma das tantas centenas de histórias, flertes e súplicas de amor de inúmeros Eusébios.
Um dia, ao sair para cumprir com seus rituais, foi acometido de um lapso momentâneo e incomum, deixando o portão aberto. Eunice, exalava o cio, Eurico respondeu ao chamado. Fugiu. Justamente no dia em que Eulália, cansada da perseguição intermitente de Eusébio, preparava sua mudança para outro lugar, bem distante dalí. Ao ver Eunice e Eurico juntos, comoveu-se e decidiu levar os dois consigo. Partiu antes que Eustáquio retornasse, deixando sacos e mais sacos de entulho e rigorosamente todas as cartas de Eusébio em sacos pretos.
Ao chegar em casa, Eustáquio viu a placa que anunciava a disponibilidade de aluguel no muro de sua vizinha. Inconformado com a ausência de Eurípedes, agora também deixavam-no Eulália, Eunice e Eurico. E para piorar os fatos, havia o retorno insuportável de todos os seus Eusébios, descobertos após um arroubo de curiosidade que o levou a abrir cada um dos sacos empilhados na calçada. Descobriu que apenas três envelopes haviam sido abertos, os primeiros que havia deixado para Eulália.Todos os outros encontravam-se tão lacrados como no dia em que foram escritos e entregues.
Entrou em casa, pegou a caneta descartável, recarregada de estimação e pôs-se a redigir o seu testamento, em que deixava tudo o que possuía, que não era assim tão modesto, para Eurico, numa vã esperança de que o animal sentiria sua falta e acharia o caminho de volta para casa.
Foi ao supermercado, pegou uma garrafa de vodka e foi andando em direção ao caixa. Parou. Pensou e calculou que uma garrafa não seria suficiente para compensar por todos os porres que nunca havia tomado em toda sua existência. Voltou. Apanhou mais uma garrafa e novamente seguiu em direção ao caixa. Entrou na fila. Na sua vez o caixa fechou. Mudou de fila. O cliente da frente deixou cair um pacote de biscoitos. Eustáquio prontamente abaixou-se para pega-lo. Ao levantar-se, percebeu que havia perdido duas posições na fila para dois jovens que ignoraram por completo sua reclamação. Tentou ao menos entregar o pacote ao cliente que o deixara cair. Este fez que não ouviu. Olhou à sua volta e todos os caixas tinham filas imensas. Decidiu que não pagaria e foi andando em direção à saída. Havia um guarda em posição de vigília ao lado da porta do estabelecimento. Temeu, mas seguiu em frente, passando pelo guarda e já esperando que o alarme soasse e todos viessem a perseguí-lo pelas ruas. Gritariam pega ladrão, haveria tiroteio, seria baleado, socorrido de helicóptero, mas morreria como o anti-herói, carregado nos braços do povo em seu funeral. O alarme não soou. Ninguem o perseguiu. Olhou para trás para certificar-se que era caçado e não viu mais do que senhoras carregando suas sacolas de compras e crianças a deliciarem-se com seus sacos de balas.
Ao chegar à sua rua já havia bebido uma garrafa e meia. Parou em frente à antiga casa de Eulália e pronunciou no idioma Embriaguêz:
– Eulália minha vida. Eulália minhas cartas. Eulália...Eustáquio...Eusébio dos infernos!
Numa última e única golada terminou com a segunda garrafa e caiu sobre os sacos pretos que continham suas cartas. Misturava-se a eles com seu terno preto, seu uniforme desde sempre. Alí ficou por toda a madrugada. Pela manhã, Eurico que encontrara o caminho de volta, cheirou Eustáquio, levantou a pata traseira e mijou em sua cabeça. Eurico entrou em casa. Eustáquio abriu um dos olhos e retornou ao coma.
O caminhão de lixo parou em frente à antiga casa de Eulália. Os coletores pegavam os sacos e os arremessavam na caçamba. Fizeram o mesmo com Eustáquio. Na caçamba ele era chacoalhado, misturado, difundido e levado para o aterro, vulgo lixão.
Lá foi depositado, empilhado, coberto por sacos fétidos, alimentos podres, fraldas imundas, entre outras coisas inomináveis, inclusive as cartas de amor de Eusébio. Descoberto pelos recicladores, teve suas roupas arrancadas e disputadas a tapas, porém o resto ficou lá, completamente descoberto, indubtavelmente nú. Os urubús, que compartilhavam com os ratos os restos mais podres que poderiam haver naquele aglomerado, pousavam sobre os membros de Eustáquio e bicavam apenas o que encontravam de podre em volta dele. Depois de limparem o entorno de Eustáquio, voaram e foram atrás de um novo despejo que acabara de chegar. Porém um velho urubú-rei, manco, de asa quebrada e cego chegou atrasado até Eustáquio. Seu olfato já cansado não permitia-lhe mais distinguir entre fresco e podre. Bicou a bocheha de Eustáquio, que assutou-se, mas não tinha força nenhuma, muito menos motivação para reagir. A segunda bicada foi na outra bochecha  e não parou mais. Eustáquio parecia sorrir. Aparentava uma felicidade que jamais experimentara. Sentia sua alma encher de vida ao passo que sua carne era lentamente devorada. Sentia tanto prazer que esboçou uma tímida ereção logo abortada pelo velho, cego e insaciável urubú.
Após fartar-se, a ave cambaleante deixava para trás a carcaça finda quase que por completo, rodeada de vários Eusébios banhados com o sangue fresco de Eustáquio. O banquete fora digno das mesas de grandes reis, mas agora a gula cobrava-lhe o ônus de uma digestão impossível.
Vencido, enfim, por uma terrível congestão, o caquético urubú-rei, desprovido de qualquer majestade, caiu e subitmamente morreu sem que ao menos pudesse dar ao seu intestino a mínima chance de digerir Eustáquio. 

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