sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O Porão da Escrivaninha






É comum acreditarmos em histórias com finais felizes nos dias de hoje, pois tornaram-se tão banais as suas demonstrações que fugir à regra é em si uma exceção.
Não que finais felizes não tragam algum tipo de conforto ou até alívio para as dúvidas inquietantes da alma, mas o que pode haver de feliz quando o único final que se permite uma certeza inquestionável é o que atende pelo nome de morte? Morte do corpo, da massa de células condensadas, que deixa de estar presente tal qual é reconhecida como viva, por motivos que extrapolam as limitadas linhas que aqui dispomos.
Portanto falar da morte e dizer que nela há felicidade é de um romantismo que beira o irresponsável, quando não apenas inócuo na intenção de trazer esperanças aos que deixarão de estar presentes.
Não pensar no fim e sim no decorrer do viver e, principalmente, não negando a possibilidade inescapável dos percalços e adiamentos foi sempre uma questão de boa sobrevivência para Jayme. Não pensou que o encontro nas escadarias tão aguardado e vivido sob intensa e arrebatadora emoção significaria o fim que representaria a felicidade almejada enfim alcançada. Tinha plena consciência do fato de que começava ali o longo caminho a percorrer e que como antecipava a própria resistência de sua escrivaninha em deixar-lhe ir ao encontro de sua amada, seria uma empreitada para tantas vidas de modo que o que seria alcançado em apenas uma ficaria a dever e muito ao ideário de felicidade, pois longos e numerosos eram os anos já passados, muitas as experiências vividas nas trajetórias de ambos, Jayme e Zélia, que a partir de então em comum haveria apenas as boas e breves lembranças de uma adolescência ordinária, de sonhos inocentes e a presente concomitância de desejos que ainda estava por se constatar, pois nem o mais romântico dos encontros é insuscetível aos maus agouros dos invejosos que lutam insistentemente a sabotar a felicidade alheia.
Enquanto os inocentes desconhecedores das reviravoltas da vida seriam coerentemente céticos e cínicos, os mais vividos e não menos cínicos não ousariam duvidar que Jayme e Zélia não se furtariam a confluir, muito embora tal confluência não ocorresse em tempo determinado e esperado de acordo com os anseios dos leitores de romances juvenis vampirescos, ou dos contistas que fazem da súmula útil ferramenta contra o enorme peso das pálpebras de leitores desconcentrados, desinteressados, efêmeros.
Do dia do encontro até os últimos dias de existência física dos dois amantes poderíamos narrar uma saga, dividida em mais capítulos do que a Ilíada de Homero, com idas e vindas que não se difeririam das vidas conjugais cotidianas, mas que em nenhuma vírgula mal posta ficaria a dever em genuinidade na maneira como dedicavam-se à tarefa de complementarem-se, sem que para isso suprimissem as autenticidades tão caras a ambos, que eram em si a origem e o propósito de se amarem.
Relatar com palavras os pormenores do que foi vivido por Jayme e Zélia indubitavelmente acarretaria na banalização do que de mais puro pode-se conceber por amor, ainda que tal sentimento esteja sob suspeita de ter sido cooptado e subvertido pela mercantilização e sua consequente conversão em produto barato.
Simplesmente, tal amor era como são os diamantes ainda não encontrados, longe de serem lapidados, imunes aos caprichos e normas quando submetidos ao toque humano, puros e desformes em seu estado bruto, de valor inestimável na escala monetária. Assim o era e isto basta para compreender o que se passava naquela casa desde de o despertar, invadindo o adormecer, mesmo nas discordâncias não tão raras, mas pontuais.
Relevante, porém, seria mencionar um ato sutil que ocorreu no evento da vinda de Zélia à casa de Jayme, quando enfim decidiram que lá seria a morada de tantos anos, pois o começo prático da vida a dois requer algumas garantias inevitáveis, sendo o lar o mais emergencial deles, pois ali depositar-se-iam as sensações de conforto, descanso e segurança. Tudo isso estaria sob risco de ruína com a doravante presença indesejável da escrivaninha. Jayme decidiu por dela se desfazer, porém não em caráter irrevogável como as linhas gravadas a peso de pena, pulso e pensamentos.
No porão onde encontravam-se gaiolas inabitadas, sacos de milho, ferramentas enferrujadas e prateleiras lotadas de caixas de sapatos recheadas com tralhas que se não possuíam vida própria, pelo menos assumiam significados diferentes ao seus propósitos primordiais, encontrava-se a escrivaninha posicionada ao canto sem a imponência e destaque de outrora. Era o porão, mas bem que poderia ser o seu jazigo. Em todos os anos naquela casa somente Jayme frequantava o úmido recinto de luz amarelada e tão fraca que por muito pouco não se faria perceber. Jayme não intencionava escondê-la, tanto que o porão nem trancado ficava. A exclusividade de acesso de Jayme era uma decisão soberana de Zélia, que nunca fez menção de descer até lá, pois além da escrivaninha não haveria de ter interesse algum em visitar o passado tão fisicamente representado em poeira e bolor. Zélia olhava somente o porvir, enquanto que a escrivaninha, por mais que ali estivessem contidos os sentimentos consagrados de seu amado, aprisionava-a à literatura como um personagem, mesmo que pertencesse apenas ao mundo particular de seu dono.
 A escrivaninha estaria segura e fadada ao esquecimento eterno, não fosse a curiosidade de Ana, sobrinha de Zélia que frequentemente hospedava-se naquela casa e que em um de seus frequentes rompantes decorrentes de uma incurável ansiedade que provocava-lhe insônia grave, viu-se diante da ranhuras lineares. Sentiu-se como a desvendar um mistério arqueológico, inesperado e de súbito arrebatamento. Pela falta de luz que propiciasse a leitura das linhas cinzeladas na cerejeira, achou uma metade esquecida de vela após alguns minutos de procura às semi-escuras, de pavio tão enrijecido que se quebrou, obrigando-a a cavar a parafina com as unhas até que uma ponta pudesse ser pinçada e acesa. Trazia consigo uma caixa de fósforos, pois era adepta do tabagismo. Aliás, foi este o motivo pelo qual acabou sendo levada a refugiar-se no porão. Havia escapado de dentro de casa para praticar o vício quando uma chuva, que havia começado leve e suportável tornou-se torrencial, não a deixando muitas opções, pois por bom senso haveria de poupar os tios de danos desnecessários à saúde, sobretudo nesta altura da vida em que um sopro tem a força de uma tempestade.  O cigarro porém não escapou ileso à chuva, mas Ana agora estava apenas imbuída de dar à escrivaninha a atenção que era suplicada de seus olhos. Aproximou-se com a vela acesa das ranhuras para que não perdesse uma letra sequer. Na pele dos dedos de Ana sentia-se um toque suave, porém convicto da superfície lírica das ranhaduras. A chama da vela iluminava a escrivaninha e também as lágrimas cada vez mais salientes em seus olhos. Ana era às vezes interrompida pelo intermitente gotejar que incidia sobre os versos, ora da chuva, ora de sua lágrimas, mas não se permitiria deter pelas águas de intempéries climáticas nem do arrebatamento de seus sentidos. 
Não me atrevo e nem se pode narrar com precisão os sentimentos de Ana ao ler a carta perene, pois qualquer descrição estará tão distante do ocorrido quanto notícias de jornal da realidade, nem deverá alguem supor que o simples fato de emocioná-la garantirá a satisfação da expectativa daqueles que neste momento gostariam de estar no lugar dela, ocupando-se exatamente do mesmo ofício. O que se pode fazer como  melhor oferta é dar ao leitor anônimo os exatos olhos de Ana, tal qual eles viam as palavras, a madeira, as águas, a pouca luz e os sentimentos ali empregados pelo autor dos versos, mas que sintam-se descompromissados para sentirem-se como o desejarem.
A carta na madeira:


Recebi sua carta hoje, quando preparava meu espírito para morrer por mais um dia. Percebi que ainda havia tempo e sem hesitar corri para reacender a  minha vida. De suas linhas generosas vinha a sua voz que do último encontro ainda ecoava em meus ouvidos e sua imagem, que exibi por tantos anos sobre esta mesa, sorria com muito mais graça do que de costume. Folhas foram rasgadas, frases desfeitas, pensamentos diluídos em tentativas pouco exitosas de corresponder o quanto antes ao seu chamado e quando a mim restaram somente o desejo, uma  pena seca e esta escrivaninha fiz desta última e penosa tarefa, a oportunidade de eternizar um sentimento indomável para a alma de um ser mortal.
Às escadarias jamais retornei temendo não vê-la. Buscava-te onde sabia que não a encontraria, ao menos assim mantinha-me vivo, mesmo que distante e inalcançável. Antes que perguntes o motivo de tanta loucura ou que em mim  apontes covardia, fi-lo para penitenciar-me, pois sabes muito bem que a deixei esperando por um sinal de que viria ao seu encontro. Esperastes, sei, até que a urgência de viver fosse devidamente atendida. Sendo assim, ver-te feliz, mas não ao meu lado, certamente levar-me-ia às raias da insanidade, possivelmente ao desfecho mais trágico. É sim de minha parte um egoísmo homérico, porém de uma sinceridade inquestionável.
Agora tenho diante de mim o seu chamado, contendo o seu exato paradeiro, que não poderia ser outro senão os nossos degraus, seu desejo de ver-me novamente diante de ti, não como vistes há quase duas décadas, tampouco como deves imaginar, pois não posso gabar-me de ser do tempo um fiel aliado, mas sendo o que nasci para ser e assim morrerei, teu e somente teu.
Estou a caminho e desta vez não haverá desencontros nem covardia. Na hora marcada, o tempo fenecerá diante de um sentimento que sujeito a ele chamam-lhe vulgarmente de amor, porém além de suas amarras, nem mesmo os doutos dos vocábulos foram ainda capazes de significar.
À minha Zélia, aqui imortalizada, jamais esquecida, para sempre amada.
Do teu e somente teu,
                                                                                                                        Jayme


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