segunda-feira, 11 de julho de 2011

Sobre escrivaninhas e escadarias


O retrato de sua amada Zélia ainda repousava sobre a escrivaninha de cerejeira, posicionada sob a janela do escritório, com vista desimpedida para a cidade.

Algumas páginas amareladas contendo versos sobre linhas descomprometidas ainda aguardavam seu desfecho sob a bola de vidro que repousava como guardiã daqueles fragmentos de história. A velha caneta tinteiro ainda aguardava ansiosamente pelos punhos inquietos de Jayme, mas a tinta, seca há tempos, apenas borrava o fundo do frasco.

Enquanto a fotografia permanecesse à sua frente, nenhuma palavra seria pronunciada, tão menos escrita.

Zélia, sentada nas escadarias da Igreja, no frescor de seus quinze anos, ao sorrir dizia tudo que Jayme queria escutar, mesmo que inaudível em preto e branco aos incautos.

Jayme sabia de Zélia apenas o suficiente para que aquele momento eternizado em papel nunca perdesse o toque quase libidinoso de seus lábios. A suavidade de Zélia desamparava o homem que se tornava um menino ao deitar naquele colo macio, recebendo dos hábeis dedos de sua amada as carícias que separavam cada fio de seus cabelos.

Foram poucos os momentos de presença. Muito mais intensos do que várias existências alheias vividas em gozo efêmero.

Jayme não era presente, mas onipresente onde quer que Zélia em seu pensamento se materializasse. Teriam filhos, formariam uma grande família. Viriam os netos, quiçá bisnetos.

Jamais acreditou que ela se ausentaria de sua vida por uma razão que não fosse irremediável. Irremediável para Jayme só a morte. Para o resto, onde os planos não podem prover, faça-se o sonho.

Abdicou de quaisquer planos, para não se escravizar em expectativas. Não nascera para mártir. Suas aspirações de tão humildes, o acanhavam perante os amigos. Não estocava alimentos. Trazia apenas o essencial para o dia. Fazia a feira sete vezes por semana, duas vezes ao dia, em quatorze lugares diferentes. Acreditava que assim aumentaria suas chances de encontrá-la.

Piegas, bêbado, pândego, digno de pena. Restava-lhe a escrivaninha, as folhas amareladas, a caneta, o frasco com tinta seca e a imagem anacrônica de uma Zélia que teimava em existir em seus pensamentos.

Quando por debaixo da porta ouviu o deslizar inconfundível do envelope pardo, levantando a poeira que soterrava o chão de sua casa.

Leu seu nome escrito com letras desenhadas por mãos suaves. Mãos femininas, de certo. Abaixar para apanhar o envelope durou exatamente trinta e cinco suposições diferentes de remetentes que sempre convergiam para um, ou melhor dizendo uma. A uma.

Se virasse o envelope poderia se deparar com aquele nome e então teria que abdicar de seus pertences, sua rotina, sua vida.

Chegou a desistir, mas quem seria capaz de outorgar a si mesmo a condição de covarde-mór perante a possibilidade da felicidade desejada? Quem constrói um panteão deve assumir a condição que lhe cabe, não de rei, mas de curador de suas premissas.

Assim tomou o envelope em suas mãos. Ao virá-lo lia-se um certo logradouro. Havia um nome talvez, mas o logradouro saltou-lhe aos olhos. Dirigiu-se à escrivaninha. Empunhou sua caneta. Cuspiu no frasco de tinta e por milagre o que era fosco pôs-se a brilhar. À primeira página deu o tratamento de uma rainha. Teceu todos os sentimentos que dispunha para formar o tecido que agora lhe vestia o espírito.

Arrebatado pelas linhas que via formar à sua frente, foi se distanciando e cantarolava, ora gargalhava, voltava a cantarolar, sorria, finalmente estabelecendo com a fotografia uma cumplicidade  que sempre desejara ter em corpo presente.

Por seus dedos passavam gracejos, reticências, rimas e versos obsequiosos. Não omitiu um termo sequer que não devesse ali constar.

Passou dias a redigir. Ao final de cada missiva, rasgava e recomeçava do zero. Sentia um prazer inesgotável em recriar. Ficaria ali por todas as encarnações que tivesse direito a se ocupar daquela tarefa por tanto tempo desejada.

Foram tantos recomeços que os papéis se esgotaram. Raspou o frasco de tinta até o ponto em que a última gota de saliva nada mais pudesse fazer. Cogitou escrever com o próprio sangue, mas não plagiaria um mero marquês libertino.

Com a ponta seca da caneta lanhou a carne da cerejeira, lavrando sua resposta em caráter irrevogável.

Sorriu ,enfim, à fotografia, com a sensação do dever quase cumprido.

Zélia nunca esperou a resposta. Esperava por Jayme, na escadaria da igreja, com o mesmo sorriso inconfundível.

Ávida. Linda. Suave. 

3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto gostoso de ler e envolvente. Continue!

    ResponderExcluir
  2. Eta, orgulho desse menino!
    Delícia de texto!
    Parabéns!!!!

    ResponderExcluir
  3. hei, deu uma olhada no blog, bem interessante. gostei dos textos!
    []s

    ResponderExcluir