segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Sou Carioca, sou de Madureira

                                                          ( Foto: J. Ricardo)


Renascer das cinzas talvez seja das tarefas, a mais difícil.
Sobretudo quando o passado de tão glorioso, inebria-nos a alma da mesma forma que paralisa nossos corpos, cegando-nos para qualquer espelho alheio ao de nosso armário. Isso nos torna de uma maneira tão herméticos que construímos um casulo até o ponto de decidirmos viver apenas para conservá-lo, apostando numa existência mínima e confortável.
Chega um dia em que as nossas asas crescem, mesmo estando aprisionados em nosso casulo, ou ovo se preferirem. O casulo se rompe e não há mais como retornar. A única alternativa é voar.
Não se trata de borboletas, tão belas quanto frágeis. Não são pássaros quaisquer. São águias. E águias não suportam a clausura. Seu destino é voar acima de todos, enxergar à frente, ser soberana. Mas se não caçar todos os dias, fenecerá. Se não cuidar do ninho extinguir-se-á.
Não há a pretensão aqui de se apregoar uma receita que ajude aos carentes de inspiração.
Este é um relato de um momento no qual o ovo que se quebrava, revelava não um filhote despenado, sem jeito e dependente, mas uma fênix altaneira, imbatível e faminta.
Do que se trata a Portela? Se eu fosse um estrangeiro no ninho da águia, esta pergunta não sairia da minha cabeça até que eu obtivesse a resposta que saciasse a minha reles curiosidade. Acontece que não sou estrangeiro. E sendo nativo, a resposta deveria saber. E agora tenho a certeza indelével de não saber.
Preciso pontuar a temporalidade de meu relato, pois de lindas histórias nosso livro não dá conta.
Final da escolha do samba que representaria a Portela no ano de 2015. O enredo era em si familiar ao Portelense no que diz respeito à sua paisagem. A linguagem, esta sim, uma novidade agradável e desafiadora. Em nossa pauta, a surrealidade de uma cidade de quatrocentos e cinquenta anos.
Em minha cabeça já havia raciocinado, ponderado, calculado e até metrificado a qualidade de uma das obras e não tinha a menor das dúvidas de que a escolha seguiria seu curso lógico. Acreditava que seria escolhida uma aula de surrealismo, com a técnica impecavelmente empregada, minuciosamente respeitada, digna de contemplação dos mestres da arte citada.
Eis que o ovo se quebra.
Encontrava-me num piso superior da quadra, o que me dava uma visão privilegiada dos entornos. Era uma sensação de enxergar como águia.
Dali eu via meus irmãos de camisa e co-irmãos vindos de perto e de muito longe. Mangueira, Império Serrano, Salgueiro, Vai Vai, Nenê de Vila Matilde, Dragões da Real, e o mar azul e branco de apaixonados Portelenses.
Antes que a segunda apresentação começasse oficialmente, o entoar do hino já dominava os quatro cantos da quadra e dali em diante o que se viu foi o vôo da águia que viajava cada vez mais alto até que transcendeu e pairou sobre o mundo dos sentidos tal qual o percebemos.
Não se tratava de uma aula de surrealismo, mas sim o surreal acontencendo de forma atemporal, inesquecível, inquestionável.
Uma obra surreal só o é se todas as partes estiverem presentes e os seus efeitos se realizam. Ali havia, o símbolo, o belo, a estranhamento, o inusitado, o arrebatamento e a sublimação.
A anfitriã parecia se alimentar da alma dos seus filhos e convidados e retribuía em forma de comoção, gerando uma catarse capaz de fazer surtar de loucura o próprio Salvador Dali. Os jurados apenas ratificaram uma escolha tomada no chão da quadra. O que pode vir a acontecer quando estivermos sob o julgo de olhares estranhos, que por tantas vezes olha, mas não vê.
A Portela emocionou e transbordou, literalmente pelas ruas de Oswaldo Cruz e Madureira, quando um sol alaranjado iluminava as almas lavadas dos devotos do samba, que naquele momento não tinham bandeiras. Encarnavam o samba em estado bruto, era a vida em seu plano surreal. Sentiam-se campeões.
Com todo o respeito que um artista campeão como Paulo Barros merece, tomarei a liberdade de responder à pergunta - enredo de sua agremiação, a não menos campeã Mocidade Independente de Padre Miguel: Se o mundo acabasse e só lhe restasse um dia, o que você faria?
Sem dúvida alguma, eu iria pra Portela. Para ver o mundo renascer pelos olhos da águia.



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