segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Respeitável Público




A primeira olhada no espelho nas primeiras horas da manhã causaram-lhe um espanto medonho.
Tentou lembrar-se de como havia chegado ali a despeito da certeza indisputável de que por vontade própria não haveria de ter sido.
Suas mãos não obedeciam a nenhum esforço voluntário como se estivesse num daqueles sonhos nos quais há plena consciência e nenhuma autonomia.
A torneira foi aberta pela mão direita que aliando-se à esquerda enconchavam-se e inundavam-se, golpeando seu rosto em catapultadas geladas e úmidas. Três foram as demonstrações de realidade que lavariam o mais fino resquício de dúvida.
Lutou, mas seus gestos descoordenados produziam um emaranhado com os fios, que agora percebidos, saíam de suas mãos, pés e cabeça.
Foi vestido, pintado e conduzido à arena onde a platéia se aglomerava, comia pipoca, hambúrguer, quebra-queixo e tomava refrigerante.
Saudado com aplausos e assovios, tropeçava nos sapatos, pisava em baldes vazios, ganhava cadeiradas na cabeça e tapas na cara para delírio da arquibancada.
 Suas piadas eram contadas por vozes alheias que evidenciavam que no lugar de seus lábios havia um sorriso falso permanente como um adesivo que o emudecia.
Quanto mais lutava, mais aplausos, gargalhadas e assovios. Mais pipoca, hambúrguer, quebra-queixo e refrigerante. Mais baldes, cadeiradas na cabeça e tapas na cara.
Mas a língua ainda era sua. Mordeu e engoliu.
Perdeu a graça.
Foi substituído.
O novo número foi anunciado e o espetáculo seguiu seu curso.
Daqui de cima, na redação, tinha-se a visão risível e grotesca do emaranhado de fios sobre o brinquedo patético e descartável, que estirado em forma de estrela, embebedava-se de céu.

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