- Vai dormir menino, senão o
Didi Camelo vai te pegar.
Dizia
vovó quando saía de seu quarto no meio da madrugada para beber água e se
deparava com a luminosidade azulada da velha Telefunken, estrela da sala, onde
montava meu acampamento de férias no sofá marrom de listras laranja.
- Já vou vó, tô só acabando
de ver esse filme.
Geralmente isso era verdade. Assim como o temor com a
possibilidade da vinda indesejável do Aranha, mais conhecido como Didi Camelo.
Para mim e meus irmãos que morávamos na cidade grande, tais lendas deveriam ser
encaradas como coisas da roça, interiorices descabidas para amendrontar crianças
e forçá-las a submeterem-se ao regime dos mais idosos. Acontece que meus avós
maternos nunca foram disciplinadores, tampouco faziam questão de regras que não
despertasse em nós o desejo de retornar nas férias seguintes. Minha avó já era
obrigada a privar-se de nossas aventuras em seu quintal por muitos meses, o que
nos levava a crer que invocar o Didi Camelo era muito mais uma questão de
manter a lenda viva do que causar-nos qualquer medo. Mesmo que de alguma
cautela beirando o receio acometer-me-ia.
Sol
raiava, galo cantava, hora de ir à padaria portando a caderneta rosa onde a
opulenta proprietária do estabelecimento faria as anotações de seis pães, um
litro de leite no saquinho e um sonho não requisitado por minha avó, mas que de
tão garantido, o mimo não seria motivo de reprimenda. No caminho encontrava o Rafa,
o Edmar, o Romário, o Serginho, o Wander, Tatú, o Renatinho, Sirley e seus
irmãos gêmeos Sidnei e Sidclei, mais conhecidos como Capetinhas. Hélison era o
filho da vizinha que me acompanhava pela rua até a padaria e auxiliava-me, ou
vice-versa, com a tarefa de convocar os supracitados fabulosos praticantes da
pelada de rua, esporte oriundo do futebol, praticado na terra batida com cacos
de vidros escondidos como em um campo minado, à espera das pontas de nossos
dedões e algumas unhas que invariavelmente ficavam pelo caminho. Acredito hoje
que daí origina-se a famigerada expressão “dar o sangue”, usada tão
hipocritamente pelos atuais praticantes do esporte bretão.
Café da manhã tomado, ganhávamos a rua e
preparávamos as traves de pedra ou sandálias de borracha vestidas nas pedras,
para que logo em seguida tirássemos o zero-ou-um e déssemos início às escolhas
dos craques. Nem sempre a formação inicial seria a mesma no decorrer do dia.
Eram raros os motivos pelos
quais, uma pelada deveria ser interrompida. Além das eventuais passagens de
automóveis em pleno meio de campo, só parávamos para beber água, almoçar,
comprar pipoca, que aliás nos mobilizava com certa antecedência, pois ao
ouvirmos a buzina do pipoqueiro ao longe, corríamos para casa a fim de levantar
os recursos necessários em tempo hábil, já que ele com a obrigação de cobrir
todo o território do bairro, não poderia deter-se tanto apenas naquele acanhado
estádio improvisado. Os outros dois motivos pelos quais parávamos eram a total falta de iluminação artificial adequada para a
prática da pelada ao cair da noite e a visita do Didi Camelo, advindo sempre do bar do Zé Guarda,
anunciado pelo forte odor etílico e a inconfundível silhueta da cabeça enterrada
no pescoço e os braços levantados como os de um caubói que portasse duas
pistolas, uma de cada lado da cintura, as pernas flexionadas e envergadas como alicates e
a coluna em forma de ponto de interrogação. Disse silhueta, pois Didi era um
senhor de idade, muita aliás, negro com um bigode branco, barba rala e os olhos sempre
arregalados. Estes detalhes só eram percebidos quando aproximava-se de nós a ponto
de acertar uns safanões em resposta às provocações de moleques que se divertiam
com o andar que lembrava uma aranha. Chamávamos de Aranha e ele se irritava. Armava
os braços e cantava – Na Bahia tem, capoeira zum zum zum, zum zum zum zum zum
zum, capoeira mata um – dava um chute no ar que mal passava de três centimetros do chão e quase caía.
A Lenda do Didi Camelo, depois de um certo tempo perdeu
força e precisaram piorá-la ou redimensioná-la. Didi Camelo virou Lobisomem.
Pessoas juravam tê-lo visto transformar-se na fera e correr atrás daqueles que
ousavam andar pelas ruas escuras do bairro às altas horas da madrugada.
Certo dia, Didi
foi encontrado caído em uma sarjeta mal acabada, pelas ruas negligenciadas,
despido de dignidade, roubado de seu respeito e desprovido de vida. Apesar de constantemente
desomenajeado pelas crianças que repetiam as lendas infundadas e carregadas de
incompreensão de seus pais e avós.
Alguns
anos mais tarde, ouvi pela primeira vez Bahia de Todos os Deuses, samba enredo
do Salgueiro do ano de 1969. Didi Camelo nos enfrentava com esse samba. Lutava
contra o mal munido de arte, com uma invocação aos Deuses e à capoeira.
Dia
desses disse à minha vó que ela estava certa. Sempre que escuto a obra de arte
do Salgueiro, Didi Camelo vem me visitar com os deuses da Bahia. Vem com zum zum zum,
Preto Velho Benidito e a Nega Baiana. Com seus olhos brilhando e o coração
palpitando de tanta felicidade. Epa Babá Vovô Didi Camelo!
OOOOlhaaaaa!!!!
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