Renascer das cinzas talvez
seja das tarefas, a mais difícil.
Sobretudo quando o passado
de tão glorioso, inebria-nos a alma da mesma forma que paralisa nossos corpos,
cegando-nos para qualquer espelho alheio ao de nosso armário. Isso nos torna de
uma maneira tão herméticos que construímos um casulo até o ponto de decidirmos viver
apenas para conservá-lo, apostando numa existência mínima e confortável.
Chega um dia em que as
nossas asas crescem, mesmo estando aprisionados em nosso casulo, ou ovo se
preferirem. O casulo se rompe e não há mais como retornar. A única alternativa
é voar.
Não se trata de borboletas,
tão belas quanto frágeis. Não são pássaros quaisquer. São águias. E águias não
suportam a clausura. Seu destino é voar acima de todos, enxergar à frente, ser
soberana. Mas se não caçar todos os dias, fenecerá. Se não cuidar do ninho
extinguir-se-á.
Não há a pretensão aqui de se
apregoar uma receita que ajude aos carentes de inspiração.
Este é um relato de um
momento no qual o ovo que se quebrava, revelava não um filhote despenado, sem
jeito e dependente, mas uma fênix altaneira, imbatível e faminta.
Do que se trata a Portela?
Se eu fosse um estrangeiro no ninho da águia, esta pergunta não sairia da minha
cabeça até que eu obtivesse a resposta que saciasse a minha reles curiosidade. Acontece
que não sou estrangeiro. E sendo nativo, a resposta deveria saber. E agora
tenho a certeza indelével de não saber.
Preciso pontuar a
temporalidade de meu relato, pois de lindas histórias nosso livro não dá conta.
Final da escolha do samba
que representaria a Portela no ano de 2015. O enredo era em si familiar ao
Portelense no que diz respeito à sua paisagem. A linguagem, esta sim, uma
novidade agradável e desafiadora. Em nossa pauta, a surrealidade de uma cidade
de quatrocentos e cinquenta anos.
Em minha cabeça já havia
raciocinado, ponderado, calculado e até metrificado a qualidade de uma das
obras e não tinha a menor das dúvidas de que a escolha seguiria seu curso
lógico. Acreditava que seria escolhida uma aula de surrealismo, com a técnica
impecavelmente empregada, minuciosamente respeitada, digna de contemplação dos
mestres da arte citada.
Eis que o ovo se quebra.
Encontrava-me num piso
superior da quadra, o que me dava uma visão privilegiada dos entornos. Era uma
sensação de enxergar como águia.
Dali eu via meus irmãos de
camisa e co-irmãos vindos de perto e de muito longe. Mangueira, Império
Serrano, Salgueiro, Vai Vai, Nenê de Vila Matilde, Dragões da Real, e o mar
azul e branco de apaixonados Portelenses.
Antes que a segunda
apresentação começasse oficialmente, o entoar do hino já dominava os quatro
cantos da quadra e dali em diante o que se viu foi o vôo da águia que viajava
cada vez mais alto até que transcendeu e pairou sobre o mundo dos sentidos tal qual o
percebemos.
Não se tratava de uma aula
de surrealismo, mas sim o surreal acontencendo de forma atemporal, inesquecível,
inquestionável.
Uma obra surreal só o é se
todas as partes estiverem presentes e os seus efeitos se realizam. Ali havia, o
símbolo, o belo, a estranhamento, o inusitado, o arrebatamento e a sublimação.
A anfitriã parecia se
alimentar da alma dos seus filhos e convidados e retribuía em forma de comoção,
gerando uma catarse capaz de fazer surtar de loucura o próprio Salvador Dali. Os
jurados apenas ratificaram uma escolha tomada no chão da quadra. O que pode vir
a acontecer quando estivermos sob o julgo de olhares estranhos, que por tantas
vezes olha, mas não vê.
A Portela emocionou e
transbordou, literalmente pelas ruas de Oswaldo Cruz e Madureira, quando um sol
alaranjado iluminava as almas lavadas dos devotos do samba, que naquele momento
não tinham bandeiras. Encarnavam o samba em estado bruto, era a vida em seu plano
surreal. Sentiam-se campeões.
Com todo o respeito que um
artista campeão como Paulo Barros merece, tomarei a liberdade de responder à
pergunta - enredo de sua agremiação, a não menos campeã Mocidade Independente de
Padre Miguel: Se o mundo acabasse e só lhe restasse um dia, o que você faria?
Sem dúvida alguma, eu iria
pra Portela. Para ver o mundo renascer pelos olhos da águia.
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