Esta
é a história de um homem que por aqui esteve e se foi sem jamais ter sido.
Eustáquio
era seu nome de batismo. Nunca teve apelidos, pois não havia amigos para
afagar-lhe, ou inimigos dispostos a traumatizá-lo.
Nos tempos
de escola, o jovem tímido e recolhido ao exílio dos romances clássicos desprezados
pelos outros meninos que preferiam a bola, sequer era alvo de maledicências
desconfiadas devido ao seu desprezo pelo violento esporte bretão.
O
menino por diversas vezes esquecido pela mãe, que deveria buscá-lo na saída da escola
às cinco, não parecia se abalar com os frequentes lapsos maternos e aproveitava
para se meter entre as prateleiras empoeiradas da pequena, mas bem servida
biblioteca.
Sua performance
acadêmica digna de grandes louvores não era invejada pelos demais. Tampouco
procuravam-no para ajudas desesperadas no fim de ano para as provas finais.
Eustáquio
formou-se em administração de empresas e logo fez concurso público, sendo um
dos primeiros colocados e prontamente convocado a assumir o seu posto em um
banco do governo, de onde só viria a sair na ocasião de sua aposentadoria,
quando a função que ocupava foi extinta por obsolecência. Em todos os longos anos
como servidor público não foi capaz de fazer nenhuma amizade, nem mesmo para
uma cervejinha depois do expediente, haja visto que seu turno era noturno,
compensando cheques, fazendo lançamentos e débitos, um a um, manualmente com
uma inseparável caneta descartável que reutilizava trocando-lhe o refil. Tarefa
esta, diga-se de passagem, absolutamente metódica e compulsiva, pois comprava outras
canetas descartáveis da mesma marca e modelo, retirava-lhes a carga, substituía
pela terminada e desfazia-se do resto.
Viveu
com os pais até que morressem e estabeleceu uma viuvez preventiva, repleta de
ritos e manias que certamente inviabilizariam qualquer relação conjugal. Sua companhia
era Eurico, herança dos pais que acharam o pequeno vira-latas em uma excursão para
pessoas da terceira idade para Águas de Lindoia, na qual Eustáquio fez-se
presente na ida, porém seu retorno somente se deu dois dias após o dos pais,
pois seu nome não constava na lista de passageiros.
Eurico,
criado com todas as regalias de filho caçula não abanava-lhe o rabo quando
chegava do trabalho, nem mesmo deitava aos seus pés. Até latia como se fosse
para um estranho. Era arredio aos carinhos de Eustáquio, sendo que por vezes
até rosnava, chegando a morder a mesma mão que o alimentava invariavelmente
duas vezes por dia, às dez da manhã e quatro da tarde, quando enfim poderia
desfrutar de sua privacidade, pois a esta hora o suposto dono saía para
trabalhar.
As folgas
no banco eram sempre às sextas e sábados, quando aproveitava para praticar seu
passatempo favorito, o xadrez. Jogava no clube de xadrez perto de sua casa e
sempre contra o mesmo adversário, Eurípedes, que apenas trocava um boa noite
automático com Eustáquio, disparava o relógio e os dois punham-se a fazer
movimentos rápidos, como se já tivessem ensaiado todo o roteiro do jogo e estivessem
ali apenas a cumprir a mera formalidade de mover as peças. Eurípedes sempre
vencia e celebrava seus triunfos com uma risada contida, em boca fechada, com o
sarcasmo dos que tripudiam sobre o cadáver do inimigo. Abanava a cabeça em
agradecimento, desejava boa noite ao derrotado, levantava-se e desaparecia. Até
que um dia, Eurípedes não compareceu ao sagrado compromisso. Era de causar
estranheza que abrisse mão de mais um triunfo certo, mas as semanas seguintes
não foram diferentes. Aquele que havia chegado mais perto do que se poderia
dizer amigo de Eustáquio, que trocara mais palavras e acenos com ele do que
qualquer outra pessoa, abdicava do posto de seu único e maior algoz. Teria Eurípedes
se cansado das vitórias garantidas e procurado um adversário mais digno? Teria ele
mudado de clube, cidade ou país? Teria se mudado para a Europa? Morrido?
Por semanas,
Eustáquio esperou pelo implacável companheiro na mesma mesa, no mesmo horário. Começou
a considerar a hipótese de alguem se comover com sua obstinada e disciplinada teimosia
e vir dizer-lhe o paradeiro de Eurípedes, ou até mesmo oferecer-se para
substituir o titular, mas nada aconteceu. Tentou jogar sozinho, mas as peças brancas com
as quais sempre jogava eram covardemente derrotadas pelas pretas. Sentindo-se
humilhado, auto-flajelado, abandonou o xadrez.
Sua rotina
continuava intocável e cumprida à risca, com exceção da substituição do hábito
do xadrez por cartas de amor. Escrevia para remetente nenhum. Criava diversos personagens.
Corajosos, apaixonados e apaixonantes, comprometidos com a única tarefa de
fazer feliz a pessoa amada, mesmo que lhes custasse a vida. Curiosamente, todos
os personagens chamavam-se Eusébio. Ora príncipe, ora atleta, às vezes
multimilionário do petróleo, era capaz de amar com a intensidade de trombas
d´água que se tornavam gotas de orvalho na imensidão do oceano, entre outros
clichês patéticos. Eustáquio dava vida a Eusébios mil que suplicavam-lhe
liberdade para ganhar o mundo, mas o criador tinha planos menos ambiciosos para
as criaturas. Percebeu após décadas que tinha uma vizinha, Eulália, que era
solteira e tinha uma cadelinha chamada Eunice.
Já se
aproximava de sua aposentadoria, mas todos os dias ao sair para o trabalho
colocava uma de suas cartas na caixa de correspondências de Eulália. Mesmo depois
de aposentado, não abandonou o ritual de sair de casa sempre à mesma hora só
para que se obrigasse a deixar lá na caixa de Eulália mais uma das tantas centenas
de histórias, flertes e súplicas de amor de inúmeros Eusébios.
Um dia,
ao sair para cumprir com seus rituais, foi acometido de um lapso momentâneo e
incomum, deixando o portão aberto. Eunice, exalava o cio, Eurico respondeu ao
chamado. Fugiu. Justamente no dia em que Eulália, cansada da perseguição
intermitente de Eusébio, preparava sua mudança para outro lugar, bem distante
dalí. Ao ver Eunice e Eurico juntos, comoveu-se e decidiu levar os dois
consigo. Partiu antes que Eustáquio retornasse, deixando sacos e mais sacos de
entulho e rigorosamente todas as cartas de Eusébio em sacos pretos.
Ao chegar
em casa, Eustáquio viu a placa que anunciava a disponibilidade de aluguel no
muro de sua vizinha. Inconformado com a ausência de Eurípedes, agora também deixavam-no
Eulália, Eunice e Eurico. E para piorar os fatos, havia o retorno insuportável
de todos os seus Eusébios, descobertos após um arroubo de curiosidade que o
levou a abrir cada um dos sacos empilhados na calçada. Descobriu que apenas três
envelopes haviam sido abertos, os primeiros que havia deixado para Eulália.Todos
os outros encontravam-se tão lacrados como no dia em que foram escritos e entregues.
Entrou
em casa, pegou a caneta descartável, recarregada de estimação e pôs-se a
redigir o seu testamento, em que deixava tudo o que possuía, que não era assim
tão modesto, para Eurico, numa vã esperança de que o animal sentiria sua falta
e acharia o caminho de volta para casa.
Foi ao
supermercado, pegou uma garrafa de vodka e foi andando em direção ao caixa.
Parou. Pensou e calculou que uma garrafa não seria suficiente para compensar
por todos os porres que nunca havia tomado em toda sua existência. Voltou. Apanhou
mais uma garrafa e novamente seguiu em direção ao caixa. Entrou na fila. Na sua
vez o caixa fechou. Mudou de fila. O cliente da frente deixou cair um pacote de
biscoitos. Eustáquio prontamente abaixou-se para pega-lo. Ao levantar-se, percebeu
que havia perdido duas posições na fila para dois jovens que ignoraram por
completo sua reclamação. Tentou ao menos entregar o pacote ao cliente que o
deixara cair. Este fez que não ouviu. Olhou à sua volta e todos os caixas
tinham filas imensas. Decidiu que não pagaria e foi andando em direção à saída.
Havia um guarda em posição de vigília ao lado da porta do estabelecimento. Temeu,
mas seguiu em frente, passando pelo guarda e já esperando que o alarme soasse e
todos viessem a perseguí-lo pelas ruas. Gritariam pega ladrão, haveria
tiroteio, seria baleado, socorrido de helicóptero, mas morreria como o anti-herói,
carregado nos braços do povo em seu funeral. O alarme não soou. Ninguem o
perseguiu. Olhou para trás para certificar-se que era caçado e não viu mais do
que senhoras carregando suas sacolas de compras e crianças a deliciarem-se com
seus sacos de balas.
Ao chegar
à sua rua já havia bebido uma garrafa e meia. Parou em frente à antiga casa de
Eulália e pronunciou no idioma Embriaguêz:
–
Eulália minha vida. Eulália minhas cartas. Eulália...Eustáquio...Eusébio dos
infernos!
Numa
última e única golada terminou com a segunda garrafa e caiu sobre os sacos
pretos que continham suas cartas. Misturava-se a eles com seu terno preto, seu
uniforme desde sempre. Alí ficou por toda a madrugada. Pela manhã, Eurico que
encontrara o caminho de volta, cheirou Eustáquio, levantou a pata traseira e mijou
em sua cabeça. Eurico entrou em casa. Eustáquio abriu um dos olhos e retornou
ao coma.
O caminhão
de lixo parou em frente à antiga casa de Eulália. Os coletores pegavam os sacos
e os arremessavam na caçamba. Fizeram o mesmo com Eustáquio. Na caçamba ele era
chacoalhado, misturado, difundido e levado para o aterro, vulgo lixão.
Lá foi
depositado, empilhado, coberto por sacos fétidos, alimentos podres, fraldas
imundas, entre outras coisas inomináveis, inclusive as cartas de amor de
Eusébio. Descoberto pelos recicladores, teve suas roupas arrancadas e
disputadas a tapas, porém o resto ficou lá, completamente descoberto, indubtavelmente
nú. Os urubús, que compartilhavam com os ratos os restos mais podres que
poderiam haver naquele aglomerado, pousavam sobre os membros de Eustáquio e
bicavam apenas o que encontravam de podre em volta dele. Depois de limparem o
entorno de Eustáquio, voaram e foram atrás de um novo despejo que acabara de
chegar. Porém um velho urubú-rei, manco, de asa quebrada e cego chegou atrasado
até Eustáquio. Seu olfato já cansado não permitia-lhe mais distinguir entre
fresco e podre. Bicou a bocheha de Eustáquio, que assutou-se, mas não tinha
força nenhuma, muito menos motivação para reagir. A segunda bicada foi na outra
bochecha e não parou mais. Eustáquio
parecia sorrir. Aparentava uma felicidade que jamais experimentara. Sentia sua
alma encher de vida ao passo que sua carne era lentamente devorada. Sentia
tanto prazer que esboçou uma tímida ereção logo abortada pelo velho, cego e insaciável
urubú.
Após
fartar-se, a ave cambaleante deixava para trás a carcaça finda quase que por
completo, rodeada de vários Eusébios banhados com o sangue fresco de Eustáquio.
O banquete fora digno das mesas de grandes reis, mas agora a gula cobrava-lhe o
ônus de uma digestão impossível.
Vencido,
enfim, por uma terrível congestão, o caquético urubú-rei, desprovido de
qualquer majestade, caiu e subitmamente morreu sem que ao menos pudesse dar ao
seu intestino a mínima chance de digerir Eustáquio.
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