Depois
de sua morte, Heitor foi recebido no céu com ressalvas. Nunca havia sido religioso
enquanto vivo e até pregava aqui e acolá sua desconfiança de forma bem
contundente, renegando inclusive ao próprio sobrenome como uma maneira de se desfazer,
mesmo que unilateralmente, de qualquer vestígio da herança de fé de sua
família.
A administração
celestial, por sua vez, não tinha outra alternativa, segundo o regimento
interno, senão acolher aquela alma recém desencarnada. Mas decidiram que, mesmo
antes do purgatório, Heitor seria submetido à uma espécie de quarentena, cujo
diagnóstico poderia determinar sua sentença que variaria entre ocupar uma
função insignificante, como semear nuvens, lustrar estrelas ou até mesmo fazer
pequenos reparos em camisolas, até ser definitivamente banido e enviado direto
para o inferno.
Recebeu
a punição máxima depois de quebrar inúmeras estrelas (há quem diga que
propositalmente), semear nuvens ocas pelas quais vazavam anjos que quebravam
suas asas e não podiam desempenhar suas tarefas fundamentais e esquecer
inúmeras agulhas emaranhadas nas costuras mal feitas, que acabavam por espetar
anjos e santos.
Fez suas
malas resignadamente e lá se foi terra
adentro, cada vez mais fundo, cada vez mais quente. De cara ao chegar,
reencontrou um de seus únicos e melhores amigos, Anselmo. Recebeu as boas
vindas com tapinhas nos ombros e um chute de surpresa nas costas que o fez cair
de cara e peito na lama quente. Ao levantar-se procurou pela mala, mas no
momento em que caía, soltou-a e a perdeu de vista. De certo fora roubada e suas
vestes zombadas e finalmente rasgadas, pois ali elas não teriam nenhuma
serventia.
Caminhou
por algumas horas com as pernas enterradas até os joelhos na lama e lodo
fedorento até que aproximou-se de um palácio gótico, com esculturas escabrosas
e grades de ferro maciço. Ouvia uma música que alternava notas dissonantes que
culminavam em estribilhos de extrema euforia, que ficava mais alta, mais
intensa ao passo que chegava mais perto.
Seguiu
palácio a dentro sem ser incomodado, guiado pela música que já palpitava em seu
peito, quando finalmente alcançou o corredor que levaria ao salão onde a
suposta festa se realizava.
Quando
adentrou o salão, a música parou. Houve um silêncio sepulcral. O vazio era
sentido em todas as cinco paredes, pilastras e tochas, que ali repousavam
intactas aparentemente há séculos, possivelmente milênios.
Caminhou
em volta do meio do salão onde havia o desenho de um bode. Aproximou-se e olhou
bem nos olhos do animal de cornos espiralados. Fitou-o por alguns minutos e
pôs-se a sapatear sobre a figura, ora arrastando os pés sobre ela como se
quisesse apagá-la, ora chutando a cabeça com muita virilidade, até que exausto
sucumbiu e deitou-se sobre ela. A música explodiu no salão que logo ficou tomado
de criaturas inadjetiváveis aos olhos humanos, que dançavam com furor,
rodopiavam no ar, se chocavam, gargalhavam e bebiam algo inodoro que lhe foi
oferecido. A princípio ressabiado recusou, mas foi seguro por duas das
criaturas que enfiaram a garrafa em sua boca, fazendo-o beber quase a metade da
bebida infernal. E gostou, a ponto de pedir mais e mais. Quanto mais bebia,
mais as criaturas iam ganhando formas reconhecíveis e familiares. Ao término de
cinco garrafas reconhecia a todos como companheiros de longa data, que o
saudavam e celebravam sua chegada com tanta alegria que há rumores de que a esbórnia
era ouvida no céu e que as nuvens estremeciam.
- Mas
qual seria o motivo para tanta extravagância de alegria? Perguntou Heitor ao
velho amigo do portão que lá também estava a celebrar em meio a todos os
outros.
-
Eles nasceram, foram criados e viverão por toda eternidade neste lugar. Não conhecem
o tal mundo dos humanos. Sequer concebem um céu. Não pode haver lugar melhor
para eles do que a própria casa. Sua presença aqui é mais do que ilustre. Celebram
a ti, como fizeram a mim. Não te julgaram, na verdade esperam que você o faça
com relação a eles. Por isso esforçam-se para que você se sinta tão à vontade que
decida não ir embora. Explicou Anselmo.
-
Quer dizer que o inferno é bom e que os demônios são bonzinhos?
-
Quem criou esses nomes não foram eles. Aliás, eles sabem que são conhecidos
assim e pouco se importam.
A conversa
foi interrompida por mais bebida, mais danças e gargalhadas que duraram
séculos.
Por
fim, Heitor lá fez morada. Trabalha como uma espécie de mestre de cerimônias,
dando as boas vindas a todos que para lá são mandados. Sente-se tão em casa que
vive dizendo que lá nasceu, foi criado e que jamais estivera em outro lugar. E por
mais que isso pareça falso, não deixa de ter uma dose de verdade cínica curtida
no amargor do sarcasmo.
Aos que
duvidam de Heitor, que lhe façam uma visita e tirem suas próprias conclusões.
melhor dia para essa publicação. Espetacular!
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