Amanda finalmente conseguira
um emprego de vendedora em uma loja de decoração após meses de incessante
procura e tentativas frustradas, que quase fizeram-na crer que a maternidade
seria sua sina, ainda que não houvesse conhecido quaisquer candidatos à altura
para o cargo de coautor.
Não era culpa da escassez de
ofertas de trabalho, tampouco de pretendentes apaixonados. A razão da demora
era a abundância de critérios e regras, ou mais precisamente do critério de
suas regras.
Aos incautos poderia causar
espanto o fato de que o emprego finalmente aceito, e este é o termo mais
acurado para o caso, não figura entre as dez carreiras mais desejadas pelos
filhos da classe média pseudoeuropéia brasileira.
A vaga foi escolhida a dedo por Amanda e o setor não poderia ser outro senão o de espelhos decorativos.
É preciso saber que Amanda
era uma jovem de vinte e cinco anos, formada em sociologia, com mestrado em
ciências sociais aplicadas, que perdeu a visão aos dois anos de idade devido a
um glaucoma.
Sua primeira semana, como ela
própria já esperava, não foi promissora do ponto de vista comercial. Nenhum espelho
fora vendido e os poucos clientes com quem teve a chance de negociar deram
desculpas óbvias como “estou só olhando”, o que não deixa também de ser redundante
no referido setor.
As semanas seguintes não
foram tão diferentes da primeira, a ponto de sua posição ficar ameaçada sob a
justificativa de não cumprimento de metas. Embora algumas poucas unidades terem sido vendidas, o descontentamento do gerente geral da loja era nítido aos olhos
de todos e aos ouvidos de Amanda, que não precisava de palavras, apenas de tons
de voz para desnudar intenções alheias.
Não se deixava pressionar,
mas sabia que seu tempo, pelo menos ali, estava contado.
Adotou um estilo mais
agressivo de abordagem, convencida de que a meta do setor era não apenas
irreal, como banal. Precisava de uma cliente, e não bastava ser qualquer uma. Deveria
ser a cliente ideal, feito sob sua encomenda peculiar.
Quando ouviu aquela voz
suave que indagava sobre a responsabilidade pelo setor, não teve dúvidas de que
Fernanda era a mais aguardada de todas as clientes.
Após Fernanda descrever em
linhas gerais o que procurava, Amanda a conduziu ao seu espelho favorito. Tinha
linhas sóbrias, com moldura negra de madeira maciça, muito pesado e imponente.
- O que você acha desse? Perguntou
Amanda.
- Sem dúvida é lindo. É
forte e robusto. Você se importaria se eu te dissesse que você fica
linda nele?
Amanda fora completamente surpreendida
pela franqueza de Fernanda.
- Como... como assim?
Fernanda não se esquivou. Não
poderia fingir que não percebera a peculiaridade de Amanda. Também sabia que
enxergar não é sinônimo de ver, porém o reflexo no espelho não estava ao
alcance dos sentidos de Amanda, a não ser por uma narrativa.
- Você nesse espelho fica
como uma senhora altiva, que impõe respeito, cuja dignidade é inabalável. Não sei
se é a moldura ou a altura do espelho.
- Lembrei-me de minha mãe
com seus seios fartos e pernas firmes e torneadas que realçam essas
características que você mencionou.
- Por esta descrição posso
supor que você se parece com ela.
- Acho que sim. Talvez você
gostaria de ver algo mais despojado, menos tradicional. Sugeriu uma
desconcertada Amanda.
Fernanda aceitou a sugestão
e caminharam cerca de cinco passos à esquerda do primeiro espelho. Estavam de
frente à uma moldura de flores variadas e coloridas, feitas de ferro, pintadas
à mão.
- Então, o que acha desse?
- Suave, romântico e até
bucólico. Refletida nele, você fica tão graciosa como uma criança correndo por
campos verdes, descalça, de vestido ao vento, soltando gargalhadas
descompromissadas e sinceras.
Amanda sentiu-se nua diante
daquela narrativa, mas não escondia o largo sorriso que só as almas puras tem o
privilégio de ostentar.
- Minha irmã.
- Como disse? Indagou
Fernanda, ao acordar de um transe momentâneo.
- Assim era minha irmã, Rita.
Ajudou minha mãe a me criar. Quando fui para a faculdade pagou meus estudos,
trabalhando em dois empregos, sem jamais demonstrar nenhum cansaço. Sempre sorrindo,
de bem com a vida e feliz por poder me ajudar. Nunca se casou. Para ela, o casamento
seria uma forma séria de acabar com sua alegria de viver. E para ela, viver era
brincar. Tinha uma pele tão cheirosa que todos os perfumes se calavam por onde ela passasse.
Amanda descrevia sua querida
irmã com tanta fluência que ela quase se materializava naquele espelho. Entretanto,
ao se calar e suspirar de saudades, não mais ouvia a respiração de Fernanda,
levando-a por um instante supor que sua tão esperada cliente se cansara de toda
aquela conversa e fora embora. Sentimento este prontamente desautorizado pela tranquila voz de Fernanda.
- Se dizes que o sorriso
dela era lindo eu acredito, só não posso concordar que seja mais do que o teu. E
é o seu cheiro que dá vida às flores do espelho.
Por mais que Amanda tentasse
disfarçar sua felicidade sob uma postura formal e profissional, seus lábios
grossos a venciam e se esticavam expondo aquela sequência irrepreensível de dentes
brancos como carne de coco.
Viram outros vários espelhos
e molduras. Cada espelho, uma personagem da vida de Amanda. Lá estavam também,
seu pai, tios e tias, amigas de infância, primos e primas. Fernanda enfim,
depois de muito procurar, fez uma escolha. Quis Amanda, de carne e osso.
Amanda defendeu sua tese sobre múltiplas identidades e após a conclusão de seu doutorado tiveram
duas filhas. Angela, gerada no útero de Fernanda, é suave e graciosa como
Amanda, mas a sua audácia não deixa dúvidas da influência de Fernanda. Já
Dandara, não é necessariamente sutil, assim como Fernanda também não o é. Mas
os ancestrais de Amanda estão presentes na alma e pele negras de Dandara, no
seu sorriso desconcertante, no perfume inebriante e na intelectualidade ímpar.
Amanda nunca mais procurou
emprego. Divide seu tempo entre as filhas, suas aulas, pesquisas e a loja de
espelhos que abriu com Fernanda, a menina para muito além dos seus olhos.
Lindo!
ResponderExcluirQue coisa mais linda, meu amigo!
ResponderExcluirParabéns!